Covid-19 ESTATÍSTICAS
Por cada morte por covid, há outras três por explicarFora a covid, março registou mais 800 mortes do que a média. INSA admite que “grande parte” se deva ao vírus, em pessoas que não se sabia estarem infetadas.
Nunca, nos últimos 11 anos, a mortalidade tinha aumentado no mês de março. Mas uma semana depois de surgirem os primeiros casos de covid em Portugal e ainda antes de se registar o primeiro óbito, a mortalidade começou a crescer e a afastar-se da tendência para esta época do ano, o que levou o Instituto Ricardo Jorge a alertar as autoridades de saúde. E desde então as mortes registadas pelo novo coronavírus não chegam para explicar o excesso de mortalidade: há cerca de 800 óbitos a mais desde o início do mês, segundo dois estudos científicos recentemente publicados. Ou seja, por cada morte por covid, há outras três registadas e que estão a preocupar os especialistas.
“Apesar de não ser cientificamente possível estabelecer uma relação causal direta entre esta tendência crescente e a epidemia de covid-19, a ausência de outros fenómenos com impacto na mortalidade, como a gripe ou eventos meteorológicos extremos, torna plausível que a mortalidade esteja associada à epidemia”, explica ao Expresso Ana Paula Rodrigues, do departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA).
Uma parte dessas mortes pode dever-se a causas habituais ou a causas indeterminadas por dúvida de quem certifica o óbito; e outra parte serão mortes por covid ainda não esclarecidas, por não se saber que a pessoa estava infetada com o vírus, explica a coordenadora da Rede de Médicos-Sentinela. “Tendo em conta o que se vai conhecendo sobre estimativas de outros países e sendo uma época específica do ano de baixa mortalidade, admite-se teoricamente que grande parte dessas mortes se deva a covid-19.”
Bastaria que metade deste excesso de 800 mortes se devesse ao novo coronavírus para que, na verdade, o total de óbitos já fosse o dobro do oficial. “As mortes registadas oficialmente em Portugal a 5 de abril [311] só explicam entre um quarto e um terço do excesso de mortalidade [1087 óbitos]”, afirma ao Expresso Paolo Surico, professor de economia na London Business School e coautor de um artigo sobre a mortalidade por covid em Portugal, Itália, França e Reino Unido. “Por cada morte confirmada por covid em Portugal, parece haver outras três mortes sem explicação, tendo em conta a evolução em anos anteriores.”
Um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) também aponta para um excesso de mortalidade de 1185 óbitos, dos quais 840 não confirmados como covid. Num cenário mais otimista admitem 502 mortes a mais, das quais 157 não diagnosticadas como covid. Com base nos dados do site da Vigilância da Mortalidade (ver gráfico), percebe-se que já em janeiro a mortalidade tinha estado acima da média. “O mês de janeiro está acima da média, mas não ultrapassa a variação expectável. Além disso, se olharmos para os declives, como fazemos num dos nossos cenários, ao contrário do mês de março, o de janeiro não é exceção. Tanto em 2013 como 2019, houve tendências igualmente positivas”, aponta Jorge Félix Cardoso, coautor do estudo e investigador do Cintesis (Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde).
A maioria destas mortes ocorre acima dos 75 anos, mas os investigadores não conseguem ir mais além na análise. “Não temos dados suficientes para explicar esta mortalidade e dizer se são mortes relacionadas ou não com a covid”, sublinha Pedro Pereira Rodrigues, também envolvido no estudo do Cintesis e professor na FMUP.
Para Paolo Surico, professor da London Business School, “é plausível que o vírus possa estar a ter um papel significativo dada a magnitude desta diferença”. E o mesmo está a acontecer noutros países: estimam-se cerca de 2500 mortes acima do esperado em França, três vezes mais do que os óbitos por covid conhecidos a 23 de março, e mais 4200 óbitos em Itália além dos causados pelo vírus. “A implicação disto é que o número de infetados, se for estimado usando o inverso da taxa de fatalidade, pode também ser maior do que aquele que inicialmente se pensou”, conclui o estudo.
O pneumologista e membro do gabinete de crise para a covid na Ordem dos Médicos, António Diniz, também alerta para a possibilidade de o número de diagnósticos em Portugal “ser provavelmente maior” aplicando essa lógica. “Os únicos dados objetivos para avaliar a situação são os internamentos e as mortes.”
Médicos preocupados
A preocupação com este excesso de mortalidade é partilhada por Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, considerando poder dever-se “à procura tardia de cuidados médicos”. A queda de 45% nas idas às Urgências está a alarmar os especialistas, que receiam que casos de enfartes e AVC estejam a ‘fugir’ aos hospitais. Só em março, registaram-se menos 246 mil episódios de urgência em relação ao mesmo mês do ano passado, alerta a Ordem dos Médicos.
“Temos uma quebra colossal no número de doentes que vão à Urgência e nem sabemos o que está a acontecer nas restantes linhas de atividade”, afirmou esta semana o bastonário, Miguel Guimarães, pedindo com urgência ao Ministério da Saúde que crie “uma task force” para monitorizar o que está a acontecer a estes doentes. Também o pneumologista António Diniz manifesta preocupação. “Uma redução drástica das idas às urgências pode ser perigosa. Admito que sejam sobretudo doentes crónicos, como diabéticos ou hipertensos, com medo de serem infetados se forem ao hospital.”
Para já, sublinha Ana Paula Rodrigues do INSA, é preciso estudar em detalhe as causas destas mortes, e o Instituto Ricardo Jorge está a colaborar num projeto internacional para construir um modelo matemático capaz de estimar a parte da mortalidade atribuível à covid na Europa.
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