Carlos Simões Pereira Coordenador de Medicina Intensiva do Hospital Beatriz Ângelo
“Não estou preparado para escolher doentes. Mas, se for preciso...”Responsável pelos cuidados intensivos do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, um dos mais pressionados do país, Carlos Simões Pereira admite que a unidade está a recorrer a “tudo o que for possível”, incluindo profissionais menos qualificados, que possam ir formando, para manter o atendimento. Aos 41 anos, está a viver “tempos extraordinários, para os quais ninguém está preparado”, e diz que o que tem evitado a catástrofe vivida na primeira vaga em Itália é o “comportamento cívico dos portugueses”.
Esta semana, o país bateu o recorde de doentes covid internados em cuidados intensivos. Quantas camas ainda tem disponíveis?Temos oito camas e sete estão ocupadas. Na semana passada cheguei a ter nove doentes.
Então já esteve acima de 100% de capacidade. Como foi possível?Recorrendo aos colegas de outras especialidades. Estamos a tentar chegar às dez camas muito brevemente.
Tem dificuldades em transferir doentes?Nem sempre estes doentes são transferíveis do ponto de vista clínico. Alguns estão muito instáveis. Mas, para os que podem ser transferidos, nota-se um esforço para se fazer uma integração nacional, reforçando os mecanismos de conhecimento das vagas existentes e agilizando as transferências, embora se mantenham desigualdades entre os hospitais. O processo ainda está baseado em contactos pessoais, o que não responde à necessidade.
Quantos doentes covid chegam diariamente ao seu hospital e quantos precisam de cuidados intensivos?Em média, o hospital recebe cerca de 100 doentes por dia. Destes, oito são internados e um a dois são críticos [precisam de cuidados intensivos]. O ritmo de entrada e saída é alto. Desde o início da pandemia, já tratámos 170 doentes covid nos cuidados intensivos, dos quais 60 só nos últimos dois meses, o que prova a intensidade desta segunda vaga.
Qual é o perfil dos vossos doentes?O mais novo tem 22 anos e o mais velho 89. A maior parte tem entre 60 e 80 anos, mas há um grupo cada vez mais expressivo de pessoas entre os 50 e 60 anos.
E qual é a taxa de mortalidade nos cuidados intensivos?É de 13,5%. E nos doentes ventilados sobe para 22%.
A ministra da Saúde já classificou a situação do Hospital Beatriz Ângelo como “muito preocupante”. Desde o início, têm sido notícia devido à saturação. Porquê?Nunca desmontámos o dispositivo covid, como alguns hospitais fizeram. Vivemos um pico entre maio e junho, desacelerámos em julho e agosto, mas sempre com doentes internados. E a pressão acentuou-se desde a segunda semana de setembro.
Com uma pressão contínua, por que razão não têm mais de dez camas?O nosso fator limitante são os recursos humanos. É a nossa maior angústia. A nossa equipa é formada por 14 médicos, dos quais seis intensivistas formados e oito em formação, e 42 enfermeiros. Há longos meses que estamos sujeitos a um esforço muito além do normal.
O hospital está a oferecer vales de supermercado aos médicos e enfermeiros que consigam angariar profissionais de saúde para trabalhar nos cuidados intensivos. É um sinal do vosso desespero?As estratégias de contratação não são da minha responsabilidade, mas a falta de profissionais qualificados preocupa-nos muito. Estamos a tentar reunir o máximo de forças para enfrentar as próximas semanas e recorremos a tudo o que for possível. A palavra desespero não ajuda, mas estamos a tentar chamar as pessoas que, mesmo não sendo tão qualificadas, tenham empenho para enfrentar uma situação difícil e possamos ir formando.
Se tivesse mais profissionais, poderia chegar a ter quantas camas para doentes covid?Se tivesse mais 20 enfermeiros, poderia chegar a 22 camas, recorrendo às 12 de cuidados intermédios. O apocalipse não se pode planear, mas estamos a trabalhar arduamente para evitar lá chegar. Numa situação limite, com doentes nas Urgências por tempo indeterminado ou que não são tratados, o nosso plano de contingência prevê 22 camas. E o que temos visto não afasta a possibilidade de precisarmos de lá chegar.
Porque espera este agravamento?Temos de admitir que o Norte vai esgotar a sua capacidade num curtíssimo prazo e vai precisar de pedir apoio ao resto do país. Além disso, tendo em vista o que se passou na primeira fase, é previsível que a região de Lisboa seja atingida em força nas próximas semanas. O que nos parece lógico é que todos os hospitais ativem os seus níveis máximos de contingência, porque ainda existem assimetrias.
Prevê que essa pressão aumente com a previsível realização do congresso do PCP em Loures?Neste período, qualquer aglomeração de pessoas comporta um risco tanto maior quanto maior for a transmissão comunitária da doença. E não se nota um abrandamento da transmissão. Por isso, fico perplexo que haja permissão para algumas aglomerações, seja qual for a sua natureza. A doença não tem sectarismo. Mas o que temo em relação a dezembro é o desenrolar da situação, mesmo que eventos deste tipo não ocorram.
Se a situação é tão grave, porque não encerram a atividade cirúrgica programada?Já diminuiu, com exceção da atividade cirúrgica oncológica. As decisões são tomadas caso a caso. Mas não é isso que nos impede de ter mais capacidade, porque há um mínimo de vagas não covid que temos sempre de manter. Era mais fácil tomar uma medida cega de encerrar tudo, mas temos uma obrigação ética de tratar por igual os doentes não covid.
Seria muito difícil escolher entre doentes?Os doentes críticos sempre tiveram critérios de admissão, a novidade agora é que o número de potenciais candidatos à medicina intensiva seja tão alto que não tenhamos capacidade para os atender. Será sempre uma decisão angustiante. E, sim, estou preocupado, porque no concreto, por mais orientações técnicas que existam, a decisão terá de ser solitária.
Ainda não teve de escolher, mesmo já tendo tido mais doentes do que poderia?Até agora, foram todos tratados.
Sente-se preparado para tomar estas decisões?Não, não estou preparado para escolher doentes. sinto. Mas, se for preciso... terei de o fazer.
Está cansado?Não. Preparámo-nos para uma luta demolidora numa fase inicial e o que nos aconteceu testa a nossa resiliência de longo prazo e a nossa capacidade de manter o entusiasmo pelo que fazemos, o que é mais difícil. Tenho um motivo de esperança e que me dá muito orgulho de ser português, que é a compreensão da população, que é um caso à parte à escala europeia. Quando lhes explicam bem o que é preciso, os portugueses têm um comportamento cívico exemplar. O que aconteceu no último fim de semana foi muito importante.
Ficarem em casa valeu mais do que qualquer aplauso?Sem dúvida. É o que me dá ânimo de que talvez o pior cenário possa não acontecer.
O que nos separa do que vimos em Itália?O comportamento cívico dos portugueses. O nosso sistema de saúde é mais frágil, mas, se nos derem os meios, somos capazes de fazer um trabalho de qualidade.
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