há que emigrar ou levar o investimento para offshores.
A esquerda tem sempre privilégios
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Em Espanha, pátria da Inquisição, a maioria dos partidos e dos cidadãos que os apoiam não querem nem a regeneração democrática, que reclamam, nem procuram a excelência, com que não se importam. Desfrutam esmagando os melhores. Preferem o linchamento. Mas não um linchamento qualquer. O que os seduz é o de alguém de direita, como ocorreu durante nesta semana. Estão contentes por Rajoy lhes ter servido numa bandeja, pela segunda vez, um peixe gordo: José Manuel Soria, que foi ministro da Indústria até abril. O senhor Soria demitiu-se depois de ter cometido um erro infantil: ter negado a participação - há décadas! - numa sociedade da família que operava desde o paraíso fiscal de Jersey. Aceitemos que mentiu, que é pecado mortal desde a destituição de Nixon, mas os negócios daquela empresa eram legais, próprios de companhias que se dedicam à exportação e que tentavam há décadas operar com a maior celeridade e maximizar os lucros pagando o menos impostos possível. O senhor Soria afastou-se, e fez bem, para não prejudicar o governo. Mas não está imputado, não tem um processo judicial pendente, está ao corrente de todas as suas obrigações tributárias. Está limpo. Pagou o seu erro com exemplaridade, deixando rapidamente um cargo em que prestou grandes serviços à nação.
Mas o que sabe a nação em que vivo - apenas interessada em destruir os que têm sucesso nalguma coisa e que cometeram um erro - da sua trajetória pública? Vou resumi-la. Soria enfrentou as grandes empresas espanholas com o objetivo de reordenar o setor elétrico, reduzir o défice brutal acumulado na época de Zapatero e baixar o preço da luz. Pôs-se ao lado da Repsol, que albergava a esperança de encontrar petróleo rentável nas Canárias - onde nasceu o ministro -, contrariando os ambientalistas estúpidos e os compatriotas da oposição que aproveitaram para o massacrar. E, brincando com o fogo, fez o possível para racionalizar o setor mineiro espanhol - que deveria estar fechado há tempo -, despertando a ira de alguns chefes da direita como Juan Vicente Herrera, o eterno presidente popular de Castela e Leão, que desde então jurou vingança.
Soria foi um bom ministro da Indústria. Demonstrou uma honestidade política insólita, irritando os mais poderosos e até a própria família do PP. Mas a eficácia e a perícia são alheias aos gostos da opinião pública, sobretudo a que representa a esquerda, sempre disposta a seguir o rasto de sangue como um tubarão. Os inquisidores, os tubarões, os meios de comunicação que os apoiam... tinham dado Soria como morto e enterrado. Mas ressuscitaram com dramática fúria depois da decisão do governo de enviar Soria como representante espanhol para o Banco Mundial. E depois do inesperado isco oferecido de bandeja por Rajoy, a 250 mil euros por ano - motivando inveja e ressentimento de sobra - deram o melhor de si mesmos, linchando pela segunda vez Soria, que foi o ministro da Indústria que corrigiu as confusões de Zapatero e que tinha méritos indiscutíveis para ocupar o posto no Banco Mundial e o direito a começar uma nova vida. Não pôde. Soria renunciou. A esquerda condenou-o à morte civil. Era uma nomeação inoportuna? Talvez, tendo em conta a mesquinhez e a laia do meu país.
Que laia? Agora vamos à segunda parte do filme. A Academia Espanhola de Cinema escolheu o filme Julieta para que nos represente na gala dos Óscares. Julieta é o último filme de Pedro Almodóvar que, ao mesmo tempo que o ex-ministro Soria, se viu implicado no famoso caso dos Papéis do Panamá. O realizador tinha desenhado a sua complexa trama de empresas, também há mais de uma década, com sede nas ilhas Virgens Britânicas, consideradas um paraíso fiscal. Ao contrário de Soria, cuja sociedade em Jersey servia para introduzir encargos e fazer pagamentos, e que não tem contas pendentes com o fisco, o cineasta Almodóvar tinha dinheiro nas ilhas Virgens, que ainda não sabemos se regularizou com o fisco espanhol. Quando o caso saltou para os meios de comunicação, Almodóvar reagiu choramingando. Como lhe podiam fazer isto a ele, que foi o primeiro homossexual a reconhecer a sua conduta amorosa e que além disso levou o cinema espanhol a sítios tão altos! Quando foi entrevistado em Cannes há poucos meses, precisamente quando se estreou Julieta, o filme escolhido para representar Espanha em Hollywood, disse uma grande estupidez: "Sou uma pessoa muito moral e não sinto um pingo de culpa. Não me sinto culpado nem com a sociedade nem com a necessária participação da minha riqueza com as classes mais necessitadas." Mas o facto evidente é que Almodóvar, como fez Soria quando esteve ligado às empresas da família, procurou otimizar ao máximo o rendimento da sua companhia.
Parece-me ótimo, mas tendo em conta o obsceno rigor moral aplicado pela esquerda ao caso Soria, a sua violência inquisicional, porque é Almodóvar melhor do que o ex-ministro? O que os torna diferentes? Que um é heterossexual e de direita e o outro é um gay de esquerda legendário no país? Porque Soria, que já pagou a sua culpa, que tem direito a continuar a viver, que é um alto funcionário do Estado, que tem um grande currículo e que foi um ministro notável que trabalhou pelo bem comum não podia ser um digno representante do país no Banco Mundial, e Almodóvar, pelo contrário, pode ser o melhor embaixador de Espanha na gala dos Óscares apesar de ter tido empresas que operavam a partir de paraísos fiscais? Porque é que nenhum partido espanhol se preocupou ou se comoveu com um caso como o de Almodóvar que tem uma semelhança insultante?
Uma semelhança insultante mas não exata. Quando Soria percebeu o erro infantil que tinha cometido, que foi não reconhecer a tempo a sua participação numa sociedade legal com sede em Jersey há mais de uma década, demitiu-se. Uma grande perda, porque foi o melhor ministro da Indústria em muitos anos. Pelo contrário, a reação de Almodóvar quando se soube do escândalo foi lacrimosa, pueril. Escolheu rapidamente o papel de vítima: "Penso que me deram um tratamento que não mereço simplesmente porque sou popular." E sublinhou a ousadia: "Não estou de acordo com os paraísos fiscais", disse, apesar de os ter utilizado, "mas também não estou de acordo com a mercantilização da informação por parte das empresas jornalísticas". Ainda acrescentou mais *****: "Disso somos todos vítimas, incluindo os jornalistas que trabalham nessas empresas." Esta tese asquerosa é a mesma que tem Pablo Iglesias, o líder radical do Podemos: os jornalistas são bons por natureza, más são as empresas de media, sobretudo se se metem com o Podemos, com a esquerda em geral ou, neste caso, com o ícone do cinema espanhol e do mundo gay Pedro Almodóvar.
Não senhores. Espanha deixa muito a desejar. Um país que utiliza uma vara de medir tão diferente e tão arbitrária segundo se pertença a um espectro político, se se é de esquerdas para aplicar a indulgência plena, se se é de direita para conduzir diretamente à fogueira, é um país que tem um grave problema. E não é o da regeneração democrática. É o da regeneração de consciências, que é um assunto muito menos trivial e muito mais complexo de enfrentar.