"It's the (European) Central Bank, stupid!..."
21 Novembro2011 | 23:30
Miguel Frasquilho
A crise da dívida soberana da Zona Euro não pára de crescer. Hoje, apenas um país do euro não é tratado como periférico: a Alemanha, como seria de esperar.
Mesmo países considerados financeiramente estáveis, como Holanda, Áustria, Finlândia (indefectíveis apoiantes da ortodoxia germânica), ou a gigante França, têm visto os "spreads" das respectivas taxas de juro alargar-se face às taxas alemãs. No caso francês - a 2ª maior economia do euro e a 5ª mundial (!), com uma dívida pública a aproximar-se de EUR 2 biliões (pouco menos do que a dívida italiana em valores absolutos) -, os "spreads" a 10 anos chegaram já a ultrapassar 200 pontos base, o que compara com uma média de 30-40 na primeira metade de 2011. A questão é: chegados a este ponto, existirá uma solução rápida e convincente que permita reverter a situação?...
Já não é uma novidade que os líderes políticos europeus e, sobretudo, os alemães (quem verdadeiramente exerce o poder na União Europeia, goste-se ou não) não actuaram, nunca, como deviam, a tempo e horas perante a crise. Pelo contrário, têm estado sempre "behind the curve". Inspirando cada vez menos confiança aos mercados financeiros. Uma solução que podia ter sido vista como a "grande bazuca", hoje, deixou de o ser. Refiro-me ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), que não foi dotado a tempo e horas da dimensão necessária para lidar com a propagação da crise a grandes países. Poucos dias depois da Cimeira Europeia de 21 de Julho último escrevi, nesta coluna1, que as "soluções" então acordadas de pouco ou nada iriam servir (meu dito, meu feito, infelizmente). E apontei o reforço do FEEF para um valor em redor de EUR 1.5 biliões como sendo, na altura, uma solução robusta. Porquê?... Essencialmente porque seria suficiente para acudir a países "grandes", já na altura no "olho do furacão", como a Espanha e a Itália, em caso de necessidade2.
Infelizmente, tal não foi feito nessa altura - nem até agora. Pior: a "solução" saída da recente Cimeira de 26 de Outubro, de aumentar a capacidade do FEEF para cerca de EUR 1 bilião, além de insuficiente, assenta em "engenharia financeira" (alavancagem, endividamento) e não, como devia, acontecer, na injecção de dinheiro por parte dos países europeus. Ora, resolver um problema de endividamento com… mais endividamento parece-me, no mínimo, bizarro. Além de que a Europa parecia estar a contar com a disponibilização (leia-se, empréstimo) de verbas de instituições como o FMI e de países como os EUA ou os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), o que fracassou. Porquê? Como referiu a Presidente brasileira, Dilma Rousseff, na Cimeira do G20 em Cannes, "não tenho a menor intenção de fazer nenhuma contribuição directa para o FEEF. Nem eles [europeus] têm, porque teria eu?" E está tudo dito…
Hoje, quando se permitiu que Espanha, Itália e França ficassem na mira dos mercados e dos investidores, só uma "grande bazuca" resta à Zona Euro: permitir que o Banco Central Europeu (BCE) compre ilimitadamente dívida soberana dos Estados-membros. Ou seja, que se torne o seu "lender of last resort", ou credor de último recurso.
Está instalada a ideia que tal não é permitido pelos Tratados Europeus e também pelos Estatutos da autoridade monetária europeia - o que não é verdade. O BCE está impedido, sim, de comprar dívida pública "nova" (art.º 21º dos Estatutos), isto é, o BCE não pode marcar presença na emissão de dívida pública, em leilões. Mas nada - repito - nada o impede de transaccionar (comprar) ilimitadamente dívida pública já existente no chamado mercado secundário. Basta-lhe, para tanto, emitir o dinheiro que para tal seja necessário. É isso que outros bancos centrais, como a Reserva Federal dos EUA, o Banco de Inglaterra ou o Banco do Japão, por exemplo, têm feito. E é isso que tem feito com que esses países, com fundamentais económicos piores do que a Zona Euro (incluindo défice público e dívida pública), consigam financiar-se a juros substancialmente mais baixos do que (agora) todos os países do euro com excepção da Alemanha. Nos respectivos leilões de dívida pública, os investidores estão, diga-mos, tranquilos e exigem juros menores porque têm a garantir que os bancos centrais dos EUA, Inglaterra e Japão - dados como exemplo - estão disponíveis para comprar toda e qualquer dívida pública destes países, tornando impossível um incumprimento. Ora, o que tem feito o BCE? É verdade que desde 2010 tem vindo a comprar dívida pública - mas de forma intermitente, e sempre com uma postura reticente e contrariada, o que tem alimentado a desconfiança dos investidores, levando os juros a subir e… paradoxalmente, forçando o BCE a compras adicionais (o que provavelmente não sucederia se o papel de "lender of last resort" fosse assumido).
A esta altura, interrogar-se-á o leitor: bom, se nada impede o BCE de comprar ilimitadamente no mercado de dívida pública dos países do euro, por que razão não o tem feito? Pois: é que o impedimento que existe não é legal nem formal - é político, e reside no dogmatismo da Alemanha.
Por razões históricas, existe na Alemanha um verdadeiro pavor de uma inflação exagerada: muitos acreditam que a hiper-inflação dos anos 20 do século passado contribuiu em grande escala para que Adolf Hitler tivesse ascendido ao poder (o resto da história é, infelizmente, conhecido). Porém, a hiper-inflação atrás mencionada situou-se na casa dos 12 (!) dígitos (isto é, mil milhões por cento)… Já hoje, mesmo que o BCE tivesse que emitir moeda em grandes quantidades para financiar a compra de dívida soberana, com uma economia deprimida como a europeia (com baixa procura e elevado desemprego), parece-me altamente improvável qualquer aceleração dos preços.
Claro que, avançando-se nesta direcção, teriam forçosamente que existir contrapartidas. Porque - e aí os receios da Alemanha podem ser entendidos -, se o BCE passasse a intervir como qualquer outro banco central, resgatando incondicionalmente os Estados-membros, estariam a ser eliminados os incentivos a prosseguir a austeridade e a realização das necessárias reformas estruturais. Que contrapartidas?... Uma muito maior integração económica - nomeadamente, ao nível orçamental (por exemplo, acções preventivas acrescidas e vigilância mais apertada; sanções efectivas e pesadas, políticas e financeiras, para os países transgressores; emissão de euro-obrigações). A caminho do federalismo. Com regras ditadas por… claro, adivinhou, caro leitor: a Alemanha. Quem paga, dita as regras e manda. Não se trataria, pois, de uma boleia aos países prevaricadores (entre os quais Portugal se encontra), que não teriam que se preocupar em pôr as contas em ordem nem pagar as suas dívidas; ao contrário: a contrapartida seria a continuação da austeridade que, queiramos ou não, precisa de continuar e não nos vai deixar durante alguns (largos…) anos, até as contas estarem em ordem. Claro que existiria uma perda adicional de soberania dos Estados-membros - mas não é já isso que hoje acontece com Portugal, por exemplo (bem como com a Grécia, a Irlanda e mesmo a Itália)?...
A verdade é que, ao ponto a que chegámos, a Europa, como a conhecemos, deixará de existir. Mas, sendo prático e realista, não existe alternativa - se não queremos assistir à desintegração da Zona Euro, sabe-se lá com que consequências económicas, sociais e geopolíticas para a Europa, que voltaria pelo menos 50 anos para trás.
Creio firmemente que com esta solução - que deve ser levada à prática sem demora -, a crise da dívida soberana da Zona Euro seria revertida e resolvida. Tal como Bill Clinton celebrizou a expressão "it's the economy, stupid!" durante a campanha presidencial contra George Bush (pai) em 1992, bem que agora apetece dizer "it's the (European) Central Bank, stupid!".
Nota Final: E Portugal, que papel pode desempenhar neste contexto para ajudar a resolver a crise? Com a dimensão que o nosso país possui e o ajustamento que tem que efectuar, a melhor contribuição é, realisticamente, cumprir o acordado e colocar a casa em ordem. Tudo o mais que se possa dizer sobre o assunto não passa, em minha opinião, de folclore e fogo-de-vista.
1 Artigo "Zona Euro: Ainda à Beira do Precipício", publicado no Jornal de Negócios em Agosto 02, 2011.
2 As necessidades conjuntas de financiamento de Espanha e Itália até 2014 ascendem a cerca de EUR 1.4 biliões (Espanha: EUR 530 mil milhões; Itália: EUR 860 mil milhões).
Economista
Ex-Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças
miguelfrasquilho@yahoo.com