Gente normal
03 Março2011 | 11:38
Nuno Garoupa Partilhar108
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Nuno Garoupa
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OpiniãoGente normal OpiniãoA encruzilhada OpiniãoA direita e o enriquecimento ilícito VER MAISNum país normal, governado por gente normal, os números e as estatísticas da execução fiscal de Janeiro seriam anunciados numa conferência de imprensa sóbria e solene.
(1) Num país normal, governado por gente normal, os números e as estatísticas da execução fiscal de Janeiro seriam anunciados numa conferência de imprensa sóbria e solene. O primeiro-ministro faria uma comunicação curta e rigorosa explicando que, pela via fiscal, os número abrem uma expectativa de cumprimento dos objectivos orçamentais, mas reconhecendo que o trabalho na redução da despesa teria de continuar sem apelo nem agravo. Mas Portugal não é um país normal, nem tem um governo de gente normal. Obcecado com a propaganda e a ilusão de quem simplesmente não percebe o sarilho em que nos meteu, o Governo decidiu ganhar uns pontos de popularidade durante um fim-de-semana, soprando para um jornal uma versão totalmente romanceada sobre a execução fiscal. Evidentemente que nem dois dias durou a festa. A execução fiscal de Janeiro não convenceu ninguém, o drama do financiamento da economia portuguesa aprofundou-se ainda mais, os mercados simplesmente não acreditam em Portugal e exigem taxas de juro que hipotecam a economia portuguesa por muitos anos. O Governo só não perdeu credibilidade externa porque já não tem nenhuma, como mostram sistematicamente os mercados, os nossos parceiros europeus, a senhora Merkel e os agentes económicos.
Neste momento, estando a década de 2010-2020 completamente perdida, o endividamento prosseguido pelo Governo com taxas de juro a dez anos superiores a 7% compromete efectivamente a década de 2020-2030. Estamos seriamente a hipotecar a vida dos portugueses para vinte anos. Mas nem o Governo nem os 30-35% de portugueses que continuam a apoiar o PS parecem preocupados. É irónico que a mesma camarilha que efectivamente afundou Portugal por muitos anos ande por aí com o lema "defender Portugal." Todos sabemos que quando chegar a factura, os 7% de juro não vão ser pagos pelos actuais dirigentes do PS que andam a "defender Portugal."
(2) A senhora Merkel levou uma sova eleitoral em Hamburgo. Será a primeira de muitas este ano. Com uma economia a crescer 3-4%, é um notável feito perder eleições de forma tão avalassadora. Mas a razão é óbvia. A senhora Merkel perde e perde feio porque anda a fazer o que pode para salvar o euro e Portugal, e não o contrário. O eleitorado alemão acha que a senhora Merkel devia acabar com o euro e atirar Portugal (e companhia) à voragem dos mercados. Por isso, não se entende a alegria de muito comentador socialista com as derrotas da senhora Merkel.
A via cruz eleitoral da senhora Merkel, o comportamento dos barões da CDU e do FDP (que exigem um compromisso rígido e ortodoxo por parte do Governo alemão), as guerras no banco central alemão apenas complicam a vida ao Governo português. Acham que a senhora Merkel vai flexibilizar o seu discurso ainda mais? Acham que o SPD ganha o voto dos alemães dizendo que vai ser ainda mais generoso que a senhora Merkel com Portugal?
Se a disparatada alegria de muito comentador socialista reflecte o pensamento das luminárias que governam Portugal neste momento, confirma-se que realmente vivem num mundo paralelo, sem contacto com a realidade, e caminhando alegramente sobre um abismo que nem adivinham. Faz sentido "defender Portugal" mas defender Portugal desta gente.
(3) Num país normal, governado por gente normal, não se utilizam estatísticas falsas para fazer reformas no mapa judiciário. Mas Portugal não é um país normal, nem tem um Governo de gente normal. Tomam-se decisões, gerem-se os tribunais, interfere-se com a independência do poder judicial com base em informação objectivamente falsa. Ninguém sabe quem criou e espalhou essa informação objectivamente falsa. E mesmo depois de saber-se que essa informação é objectivamente falsa, nada acontece. Em política o que parece é. Pois parece que o Ministério da Justiça decidiu abrir a caça aos juízes complicados para o Governo. Claro que os erros com estatísticas falsas podem ser meramente incompetência e laxismo (coisa a que já estamos habituados em Portugal e que sabemos não tem consequências políticas; a culpa morrerá solteira). Mas insistir numa reforma do mapa judiciário (em particular, no Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa) com base em estatísticas falsas e leituras políticas complicadas não tem nenhuma explicação possível que não seja o que parece é.
(4) De manhã, eles são contra a direita neoliberal, protegem os mais desfavorecidos, falam de justiça social, apresentam-se como os defensores intransigentes do Estado social, combatem os paraísos fiscais. À tarde, eles acham normal que uma empresa possa ganhar 10.000 milhões de euros com um só empregado, não pagar um euro de impostos, tudo em nome de um investimento estrangeiro que não cria nenhuma mais valia económica. Eles são os socialistas. A empresa é a ExxonMobil Spain. A estrutura financeira é conhecida como ETVE ("entidad de tenencia de valores extranjeros"). Tudo absolutamente legal. Com este socialismo, quem precisa de neoliberalismo?
Professor de Direito da University of Illinois
nuno.garoupa@gmail.com Assina esta coluna quinzenalmente à quinta-feira