Daniel Oliveira: Antes pelo contrário
Na sexta-feira, um deputado que estou longe de apreciar insurgiu-se contra um pormenor: o facto dos fotojornalistas tirarem fotos, com os seus zooms, aos ecrãs dos computadores dos parlamentares. O assunto não mereceria debate no hemiciclo, mas serviu para, em caixas de comentários de blogues e jornais, se medir o pulso a alguns sentimentos populares.
A minha opinião, estranha com toda a certeza, é que os fotojornalistas não devem mesmo fotografar, com zoom, como por vezes fazem, os computadores dos deputados, para tornarem público o que eles ali escrevem. Nem dos deputados nem de ninguém. Assim como não devemos espreitar para os computadores de colegas. E muito menos tirar fotografias aos seus emails, imagens, textos. Enfim, a qualquer coisa que usando um suporte que não lhes pertence não é suposto estar sujeita a exposição pública.
Recordo, para sabermos do que estamos a falar, que o "Diário de Notícias", em 2008, achou que devia publicar uma foto, captada a partir da galeria, com a imagem do visor de um telemóvel de um deputado em que se podia ler o conteúdo de mensagens privadas. E fazer sobre essas mensagens uma pequena breve (ver aqui ).
A resposta de Jaime Gama a José Lello, talvez temeroso de uma má reacção dos jornalistas, foi a de que os computadores são para serviço público. Não são pessoais. Os telemóveis dos membros do Governo também não são pessoais. Podemos ouvir? E os seus gabinetes também são de serviço público. E as suas secretárias e gavetas e armários. Podemos ir vasculhar? E um deputado pode olhar para o computador do lado e dividir com o plenário o que lá leu? O que diria Jaime Gama se tal acontecesse?
A mim parece-me que o deputado José Lello apelou ao mais elementar bom senso, só para não dizer à mais elementar boa educação. Mas como se trata de deputados, escrever isto deve ser um escândalo. Afinal de contas, diz-se, quem não deve não teme. E um político, está bom de ver, deve sempre qualquer coisa. E como se trata de jornalistas, pedir aos fotógrafos que não o façam constitui, imagino eu, um acto de pressão intolerável para limitar a liberdade de imprensa. Claro que não se pode proibir os fotógrafos de registarem as imagens que entenderem. Mas um pedido de respeito pelas regras de civilidade não teria ficado mal ao presidente da Assembleia da República.
Isto achava eu. Mas ao ler os comentários de muitos leitores às notícias dos vários jornais online fiquei a saber:
1 - Que os deputados são uns bandalhos e como bandalhos devem ser tratados. A eles não se deve, por isso, aplicar nenhuma das regras que achamos normais na convivência em sociedade.
2 - Que, como eleitores, temos direito a conhecer tudo o que eles fazem, escrevem e lêem. Porque além de bandalhos são nossos capachos. E como, ao que parece, não conseguimos que cumpram as suas promessas ou que sirvam os interesses da comunidade, em vez de mudarmos o nosso voto preferimos degradar até ao esgoto a democracia em que vivemos.
3 - Que os cidadãos, ao contrário dos deputados, nunca lêem emails privados ou consultam páginas que não se relacionam com a sua actividade profissional quando estão no trabalho.
Este país é composto exclusivamente (com excepção dos deputados, claro está) por funcionários exemplares que nunca se afastam das suas tarefas. Claro que isso torna difícil explicar porque têm os blogues e os jornais online o pico das suas visitas durante o horário de trabalho da esmagadora maioria dos portugueses. Um erro dos contadores, com toda a certeza.
4 - Que no mesmo país onde tão pouca gente se dá ao trabalho de ler programas eleitorais, de acompanhar os debates políticos com atenção ou de manter-se moderadamente informada, todos sentem que é papel central da comunicação social, a bem da transparência da vida política, divulgar o que escrevem os deputados nos seus computadores.
Quem julgue por um segundo que esta promoção do voyeurismo e do mais rasteiro populismo tem alguma coisa a ver com uma sociedade exigente com os seus eleitos não se poderia enganar mais. Tem a ver com o desprezo pelos mais elementares direitos dos cidadãos. E manifesta-se antes de mais nos deputados porque uma parte razoável dos portugueses tem pela democracia ainda menos respeito do que aquele que empresta à privacidade dos outros.
Ao ler o que tantos compatriotas meus escreveram a propósito deste episódio aparentemente menor assustei-me. A verdade é que ainda há muitos pequenos bufos e pequenos pides dentro de muitos portugueses. Só que chamam a esse abuso, porque soa melhor, liberdade de imprensa. Dizem que têm esse direito porque pagam o salário dos deputados. Se assim é, só me resta um desabafo: ainda bem que não pagam o meu.
http://aeiou.expresso.pt/um-deputado-e- ... os=f572189