Manuel Faustino
Ainda a isenção das mais-valias
Um dos temas que o Relatório do Grupo para o Estudo da Política Fiscal mais reacção vem suscitando - e esse é um debate que se deseja seja feito ao nível da "sociedade civil", independentemente do que o Governo dele queira fazer - é o da...
Um dos temas que o Relatório do Grupo para o Estudo da Política Fiscal mais reacção vem suscitando - e esse é um debate que se deseja seja feito ao nível da "sociedade civil", independentemente do que o Governo dele queira fazer - é o da "isenção" das mais-valias das acções.
Ricardo Reis, professor de Economia na Universidade de Columbia, na edição do "i" de 31 de Outubro, contesta a tributação das mais-valias, não obstante afirmar que há também bons argumentos a favor da sua tributação que, todavia, não expõe. O que, porém, me induz a entrar no debate é a frase sibilina com que termina o seu excurso: "no entanto, dizer que nada justifica a isenção actual para além de uma conspiração dos ricos é dar um salto muito maior do que as pernas da razão permitem".
É que, aqui como noutras matérias, talvez haja "razões que a razão desconhece"! E que Relatórios como o que foi publicado não poderão conter, nomeadamente porque podem ser consideradas politicamente incorrectas.
Mas vejamos as razões que Ricardo Reis invoca. Dizer que tributar as mais-valias das acções conduz a uma dupla tributação porque as empresas já pagaram IRC é uma não verdade, com todo o respeito: que IRC pagou o BCP pelas mais--valias geradas pelas transacções "provocadas" apenas para fazerem aumentar, ficticiamente, o valor das acções? E, por outro lado, não são as mais-valias, por natureza, "ganhos trazidos pelo vento"? Na correlação valor da acção/mais-valias, os dividendos distribuídos "esvaziam", como se sabe, o valor da acção. E o que se tem feito, não raro, é aproveitar esse fenómeno para, através de esquemas agressivos, transformar dividendos em mais-valias e não pagar imposto.
Estamos de acordo em que a poupança deve ser encorajada. Mas esse encorajamento não deve ser selectivo, a não ser por razões que justifiquem tal selectividade. Ora, neste domínio, um dos maiores, mais generalizados e com maior estabilidade, veículos de poupança que existia entre nós eram os "velhinhos" Certificados de Aforro. No plano tributário sempre tiveram o seu rendimento tributado a 20% e capitalizado líquido. Os juros de depósitos e a generalidade das aplicações financeiras pagam 20% de IRS. As mais-valias de muitos valores mobiliários, incluindo unidades de participação em fundos de investimento, estão sujeitas a tributação.
Mesmo as aplicações em produtos de seguros, embora com regime fiscal favorável, são tributadas. E as próprias mais-valias de acções detidas por menos de 12 meses estão sujeitas a imposto. Haverá alguma razão de ordem material para, no domínio do encorajamento da poupança, as mais-valias de acções detidas por mais de 12 meses serem pura e simplesmente excluídas da tributação? Creio que não.
Invoca ainda que é fácil "fugir" ao imposto, bastando não vender as acções e não realizar o ganho. Estamos aqui perante uma das modalidades de gestão fiscal omissiva, doutrinariamente designada por abstenção de incidência e que está longe de configurar, como o autor parece deixar sugerir, uma situação de "evasão fiscal", embora, sugestivamente, já tenha sido apelidada de alergia fiscal. São opções fiscais legítimas, mas que não invalidam a sujeição. Em algum momento a tributação sucederá. E não se pode esquecer que as mais-valias, sobretudo as voláteis, como sucede com as geradas por acções, obedecem também a mecanismos psicológicos que induzem a realização em momentos de ganho ou de menor perda e não a "planeamentos fiscais" de pagar ou não pagar imposto.
Os efeitos da tributação das mais-valias das acções nas empresas cujo capital representam parece ser uma falsa questão, estando-se, como se está a falar em transacções em bolsa. Se os investidores recebessem dividendos seriam igualmente tributados. Existe, pois, equivalência neste elemento de decisão. E dizer que se as mais-valias passarem a ser tributadas a 10% "posso tirar o meu dinheiro todo do mercado de capitais e pô-lo noutros investimentos isentos de imposto ou mesmo tirá-lo do País" parece ser uma afirmação excessivamente afoita, porque, como vimos, internamente existem poucas possibilidades de, no âmbito de uma gestão fiscal comissiva, transformar activos com um regime fiscal mais gravoso em activos com um regime fiscal mais favorável. E "tirá-lo do País", para além dos custos directos e indirectos, e também dos psicológicos que isso acarreta, a não ser que - e certamente o autor não foi isso que pretendeu insinuar - o leve para os ainda remanescentes "paraísos fiscais", não resolve o problema da tributação, pois continuam em princípio, a ter de ser aqui tributados os ganhos ou rendimentos por ele gerados, mesmo que obtidos fora do território português.
Por último, e porque a "conspiração de ricos" pode não ser tão irreal quanto isso, gostaria de deixar aqui três situações em que ela pode mesmo existir. A primeira respeita à transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas com a exclusiva finalidade de, seguidamente, se venderem acções e não quotas. A não neutralidade do regime fiscal de ambas as operações (venda de quotas ou venda de acções) levou à "habitualidade" destas situações para se ganhar muito dinheiro sem se pagar um cêntimo de imposto. A segunda respeita a situações de não distribuição de dividendos, com acumulação destes em reservas, para posteriormente, através, por exemplo, da compra de acções próprias, tais dividendos serem distribuídos sem qualquer tributação, igualmente em sociedades não cotadas. E, por último, a "transformação" de imóveis em sociedades anónimas, fenómeno a que se assistiu após a entrada em vigor do Código do IRS. De modo que, em vez de imóveis, passaram a vender-se sociedades, com um duplo ganho: em sisa (comprador) e IRS (vendedor). Esta situação só recentemente se resolveu, e creio que apenas no domínio do IRS.
Termino com uma frase colhida do Relatório inicialmente citado e que, naturalmente, subscrevo: "As dificuldades que se colocam [à tributação das mais-valias das acções] não podem, porém ser obstáculo decisivo à manutenção, em definitivo, de uma tão grave entorse aos princípios basilares da justiça na tributação".
Consultor Fiscal - Membro do Sub-Grupo 2, Tributação Directa, do Grupo para o Estudo da Política Fiscal