Guiné-Bissau: O país depois de Nino Vieira
Com a morte de Nino e de Waie, poderá desaparecer também o ciclo de violência na Guiné
00h30m
ELMANO MADAIL,
MADAIL@JN.PT
No início desta semana, o sobressalto regressou à Guiné-Bissau, um país faminto de paz - e de quase tudo o resto, aliás, figurando entre os dez estados mais pobres do planeta - com o atentado bombista que vitimou, em plena madrugada, o chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, Tagmé Na Waié.
À morte do general, que foi ontem a enterrar, seguiu-se o brutal assassinato, horas depois, do presidente da República, João Bernardo ("Nino") Vieira, que deverá ser sepultado depois de amanhã. Com o funeral dos dois homens, os observadores internacionais esperam que seja enterrado, também, o macabro ciclo de violência, assinalado por vários golpes e contragolpes de Estado, que tem devastado aquele país da África Ocidental ainda antes de obter a independência de Portugal, alcançada em 1974. Após uma guerra de libertação que durou dez anos e considerada, pelos veteranos portugueses, como a mais dura daquelas que travaram no Ultramar.
Das várias questões cuja resposta urge encontrar no meio do caos - e a principal será a das causas do morticínio mais recente -, avulta o futuro do país ele próprio. Será a Guiné-Bissau, actualmente reconhecido como um Estado falhado - isto é, no qual as instituições estão de tal modo fragilizadas que perderam já o monopólio legítimo do uso da força e a capacidade do controlo territorial -, capaz de se converter num país viável? E quais serão as condições para que esse futuro de estabilidade pacífica venha a ser uma realidade? E que papel poderá desempenhar, nesse processo, a denominada comunidade internacional?
Os contornos dos homicídios são agora mais claros, e impressionantes. Pelas 19.30 horas de domingo, Bissau foi sacudida pela deflagração de uma bomba, de fabrico tailandês e accionada por telemóvel, que matou o chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, Tagmé Na Waie, e destruiu o quartel-general. A bomba teria sido adquirida na Guiné Conacri por militares próximos do presidente da República, Nino Vieira, quando aquele visitou o país vizinho, no mês passado, para solicitar, à Junta Militar que tomou o poder em Dezembro de 2008, a libertação de Ousame Conté. O filho do antigo presidente está detido por envolvimento no narcotráfico que assola a região.
Com as ruas da cidade ocupadas pelos militares, por volta das 4 da madrugada um grupo de soldados toma de assalto a residência privada de Nino Vieira, com o apoio de um comando oriundo de Mansoa - a cerca de 80 quilómetros de Bissau -, liderado pelo actual porta-voz dos militares, José Zamora Induta, vice-chefe do Estado-Maior da Armada. A segurança presidencial não impediu o disparo de rocket nem a rajada de G-3 que abateu Nino, atingido no rosto e no peito. A autópsia confirmaria o requinte da execução: já cadáver, Nino foi espancado, primeiro, e brutalmente golpeado com catanas enraivecidas, depois, pelos algozes que - deixando a primeira dama, Isabel Vieira, refugiar-se na embaixada de Angola -, passaram ao saque da casa. Selvajeria só explicável pelo ódio profundo que alimentou tensões até ao desfecho anunciado pelo próprio Waie: "Se eu morrer, o presidente também morre". Assim foi.
Na busca de causas para o massacre, os analistas evocam as rivalidade antigas entre os dois homens, jamais resolvidas e com laivos étnicos. "Eram arqui-inimigos há muito", diz Patrícia Magalhães Ferreira, do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI), recordando que a animosidade "já vinha do tempo do golpe de Estado de Ansumane Mané, em 1999, que tinha por aliados, na altura, Tagmé Na Waie e Zamora Induta". Embora associado ao tráfico de armas - Nino demitiu Mané da chefia de Estado-Maior, acusando-o de permitir o tráfico de armas para os rebeldes do Senegal, gerando motins no Exército -, o golpe terá sido, outrossim, a tentativa de afirmação política dos balanta.
Embora seja a etnia maioritária (30% da população), e constitua a maior parte das chefias e dos efectivos das Forças Armadas, nunca teve participação correspondente no Governo. Paradigmático, Nino Vieira, que tomou o poder em 1980 após ter deposto Luís Cabral - descendente de caboverdianos -, é da etnia papel (7% dos guineenses). No entanto, era considerado um unificador do país, evitando as disputas tribais graças ao prestígio guerreiro. Era, até, conhecido por "Comandante Kabi Na Fantchama", um nome balanta...
"Essa crise de 1998 levou à etnização da política, o que nunca acontecera em Bissau. Aliás, refere, a eleição de Kumba Ialá, que tomou posse em Janeiro de 2000, foi considerada uma vitória balanta". A primeira tentativa séria de afirmação remonta, todavia, a 1985, e terá sido então que germinou o ódio pessoal entre Nino e Waie. Falhada a intentona, conhecida por "Rebelião dos Balantas", Nino torturou os principais dirigentes, entre eles o então primeiro--ministro Paulo Correia e o procurador-geral Viriato Pã (ambos executados). Waie escapou à morte, mas com os testículos esmagados.
"Quando Nino Vieira voltou, em 2005, do exílio em Portugal, alegadamente para visitar a mãe doente, encontrou uma Guiné-Bissau muito diferente da que havia deixado em 1999", diz Patrícia Magalhães Ferreira. "Por um lado, o seu prestígio era menor, por ter recorrido a tropas estrangeiras (do Senegal e da Guiné-Conacri) na guerra civil contra Mané; depois, com a economia num caos devido à gestão ruinosa de Kumba Ialá, não só as chefias castrenses haviam assumido, entrentanto, um papel importante na vida política, como havia um dado novo: o narcotráfico".
AONU não hesitou em chamar, em 2008, a Guiné-Bissau de primeiro narco-Estado africano, verdadeiro paraíso para os traficantes colombianos, que ali encontraram alternativa à via tradicional das Caraíbas. Além da África Ocidental ser o trajecto mais curto entre a América Latina e os toxicodependentes europeus, a configuração recortada da costa guineense, extensa de 350 quilómetros e com um arquipélago de 82 ilhas sem vigilância, oferece boas condições para desembarcar a droga. Agora, segundo a ONU, a Guiné-Bissau está também na mira dos traficantes de heroína da Ásia, que usam o país para o percurso inverso da cocaína, remetendo o opiácio para as Américas.
A corrupção gerada por um negócio que excede muito o rendimento nacional - 600 dólares anuais por pessoa - trouxe consequências. Segundo Clara Carvalho, directora do Centro de Estudos Africanos do ISCTE, o regresso de Nino em 2005 deveu-se, aliás, as problemas gerados pelo narcotráfico. "Quando o Governo de Carlos Gomes Júnior é eleito (em 2004), começa a criar oposição ao poder militar. Ora, são os militares, e designadamente Waie, que apoiam o seu regresso e a candidatura a presidente, esperando que se opusesse ao policiamento do narcotráfico", diz. Apesar da aliança conjuntural, a tensão mantém-se, e abrem-se fissuras quando a posição de Nino, que escapa a um atentado, nunca esclarecido, em Novembro de 2008, se torna ainda mais frágil ao perder um aliado no mês seguinte: o antigo presidente de Conacri, Lansana Conté.
Em Janeiro, fica definitivamente desguarnecido. Alegando ter sido vítima de disparos, Waie exige a substituição dos 400 homens que constituiam a guarda presidencial - os "aguentas", elite formada por Nino durante a guerra civil de 1998 e treinada no Senegal - por tropas regulares. As mesmas que terão sido cumplices dos verdugos de João Bernardo Vieira, assassinado aos 69 anos, e que vingaram Tagmé Na Waié.
E agora? Para Patrícia Ferreira, "a morte de Nino Vieira é uma oportunidade para Bissau exorcizar os fantasmas que dominaram a política nacional nas últimas décadas", diz, podendo até "funcionar um pouco à semelhança do que se passou com a morte de Jonas Savimbi em Angola, que levou à pacificação do país", na perspectiva de Clara Carvalho.
Problemas não faltam. Desde logo, económicos, num dos cinco países mais pobres do Mundo. "Será difícil à Guiné ter viabilidade económica pelos próprios meios porque, embora esteja numa zona semi-tropical de alguma riqueza agrícola, a sua produção é encarecida pelos graves problemas de transporte e distribuição devidos à sua configuração geográfica, por um lado - está na embocadura de vários rios, tornando o país muitas vezes intrasitável -, e, por outro, à ausência de estruturas rodoviárias. Além disso, as reservas petrolíferas estão no mar e a uma profundidade que, por enquanto, não torna compensador explorá-las", anota Clara Carvalho, assinalando ainda o sistema de ensino arruinado e a fuga de cérebros, juntamente com as organizações internacionais, para o estrangeiro, na guerra civil de 1998.
Considera, porém, haver sinais positivos: "Há um Governo que tem demonstrado uma vontade real de terminar com o sistema patrimonialista que existia; está a pagar aos funcionários e a negociar o perdão da dívida com o Banco Mundial e o FMI; tem tentado integrar recém-licenciados nos quadros da Administração Pública e, o que é mais importante, os militares garantiram logo que não havia golpe de Estado, e afirmaram-se dispostos a colaborar".
A boa vontade é importante, mas não chega. Terá de ser consequente. Para isso, Patrícia Ferreira diz que é prioritário "um processo de reconciliação sério. Há mecanismos tradicionais na Guiné para isso, seja em conselhos comunais, das aldeias, seja até em tribunais. A maior urgência é por as pessoas a falar dos conflitos do passado". Depois, "há que resolver a preponderência das Forças Armadas na vida política, reformulando o seu papel assim como das forças policiais e do Poder Judicial".
Por fim, o narcotráfico. "A Comunidade Internacional (CI) tem de ajudar a Guiné-Bissau a recuperar o controlo das fronteiras. Paralelamente, tem de se interrogar se os critérios que utiliza para a afectação da ajuda serão os mais adequados face ao contexto dos países receptores", salienta a investigadora do IEEI. "Porque a CI descura a capacidade de prestação de contas de um Governo - eleito ou não -, aos cidadãos, e qualquer evolução positiva que tenha havido, preferindo condicionar a ajuda à realização da Democracia formal", declara, sublinhando: "A qual, por vezes, não se repercute na formação de uma cultura verdadeiramente democrática". E é dessa que a Guiné-Bissau, agora que desapareceram os dois pólos da discórdia, precisa de começar a construir.
JN