
Dias contados
ASAS SOB A NAÇÃO
Com uma viagem aos EUA aprazada para breve, deixo-me seduzir por um e-mail da TAP, que garante ida e volta a Newark por quase metade da tarifa normal. Entro no site da companhia, que reproduz a promoção e especifica: voos directos de Lisboa e do Porto. Começo o processo de reserva online, escolho as datas e aguardo. Nas datas pretendidas, e à partida do Porto, a tarifa não está abrangida pelo desconto. Mudo as datas, o resultado é idêntico. Tento a partida de Lisboa e consigo o desconto, embora, hélas, apenas nos voos com escala no Porto. Decerto um erro informático.
Com a reserva por fazer, desisto das novas tecnologias e prossigo através das velhas: telefono à TAP, confiante no novíssimo decreto-lei que obriga os call centers das empresas públicas a atender os clientes em menos de um minuto. No atendimento geral, um gravador a imitar uma menina põe-me em espera. Sete minutos depois, uma menina real digna-se falar-me. Explico-lhe o problema. Decerto informada do decreto-lei, pede-me um minuto para esclarecer a situação. Dou-lhe um, cinco, dez, dezasseis minutos e trinta e dois segundos, período que aproveito para ouvir dezenas de vezes uma publicidade em que a TAP se vangloria de si própria. Bonito, porém cansativo. Desligo. Ligo ao aeroporto e rogo que me transfiram a chamada para o balcão da TAP. Informam-me que o balcão não concede informações por telefone e que é melhor dirigir-me lá pessoalmente.
Maravilhado por adivinharem que vivo a cinco minutos de Pedras Rubras e não em Castelo Branco, parto rumo a Pedras Rubras. No lendário balcão da TAP, preparo-me para desfiar o meu rosário e sou logo interrompido pela funcionária: as promoções não se marcam ali. Marcam-se onde? A senhora não diz. O que a senhora diz, após escrevinhar uns instantes no computador, é que a promoção anunciada (Porto-Newark-Porto) não existe. A tarifa de baixo preço limita-se ao trajecto Lisboa-Porto-Newark-Porto-Lisboa. Dado que entro no Porto, vai dar ao mesmo, não vai? Não vai, corta a funcionária, já que não posso entrar no Porto, excepto se pagar a tarifa normal. Mas o voo não aterra no Porto? Aterra. E então? Tem de entrar em Lisboa. Hã? É assim, conclui a funcionária.
Ainda bem que é assim. Ainda bem que empresas com o gabarito da TAP continuam nas mãos do Estado. Sabe Deus o pandemónio que adviria da privatização.
Quarta-feira, 11 de Março
A VERDADEIRA CRISE
A terça-feira começou com o director do Fundo Monetário Internacional a confirmar a "grande recessão", segundo o sujeito a maior dos últimos 60 anos. Se, como se diz, as crises são também oportunidades, uma crise gigantesca é uma gigantesca oportunidade para os portugueses exibirem a tradicional fleuma e não lhe ligarem nenhuma. Por cá, no máximo, o cidadão comum recebeu as palavras do sr. Strauss-Kahn com um encolher de ombros e o pertinente comentário "Isto vai bonito, vai "
Vinte e quatro horas depois, porém, inúmeros cidadãos comuns telefonavam para as rádios e as televisões em destravado alvoroço. A situação, ao que diziam, era mais do que preocupante: era trágica. No Fórum da TSF, que sintonizei a meio no rádio do carro, um ouvinte garantia: batemos no fundo. Outros ouvintes falavam em "vergonha" e "miséria". A princípio, convenci-me de que, embora com atraso, era o estado da economia a suscitar tamanho drama. Depois, percebi que o drama se prendia com o futebol caseiro em geral e com o Sporting, que perdera por 7-1, em particular.
Nenhuma surpresa. Entre nós, os dramas são peculiares e, em 99% dos casos, de enredo único. Atrás da bola não corre uma criança, mas um português destroçado por uma equipa, um treinador, um dirigente ou um árbitro. Ou, o que é provável, por todos em simultâneo. Em teoria, isto é um bom sinal: se a crise não suscita grande atenção, é porque a crise não é tão grave. Na prática, o sinal é menos bom, visto que, independentemente da depressão económica, é sempre a futebolística que nos aflige. Ainda que o FMI tenha razão e estejamos enfiados no pior buraco desde a IIª Guerra, nada afasta os portugueses das suas prioridades.
Aliás, mesmo que estivéssemos na própria II Guerra, e que os alemães, além de bombardearem o Sporting, bombardeassem literalmente as nossas cabeças, desconfio que milhares de portugueses ignorariam as sirenes antiaéreas e sairiam às ruas a pedir a demissão do sr. Paulo Bento ou lá quem é o culpado pela angustiante situação que atravessamos.
Quinta-feira, 12 de Março
O GPS DO INFORTÚNIO
Parece que, após ouvir na rádio a história de uma mulher assassinada pelo namorado, o dr. Carlos Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Coimbra, decidiu baptizar uma rua da cidade com o nome da falecida. Para não perder a deixa, o dr. Moita-Flores, famoso comentador televisivo e menos famoso edil, anunciou iniciativa semelhante em Santarém. Ambos os gestos provavelmente indiciam uma moda que, até às "autárquicas", varrerá a nação de norte a sul: imortalizar os alvos de companheiros psicóticos, enquanto, diga-se de passagem, os companheiros psicóticos são jovialmente mandados em paz pela polícia (sucedeu agora em Portimão).
No mínimo, a tendência é curiosa. Com acerto discutível, a toponímia tradicional ficava-se por exemplos de bravura, inovação, eficácia, criatividade, generosidade, etc. As senhoras em questão são exemplos do quê? Do azar? De péssimas escolhas sentimentais? Do lado negro do casamento (um alerta aos gays)? E o que rezarão as placas, "Avenida Manuela Pires, Receptora de Tareias Conjugais (1977 - 2009)"? Sinceramente, não sei.
Sei que, se a ideia é transformar os desafortunados em modelos, não há razão para que as vítimas de violência doméstica mereçam mais atenção que as vítimas de violência pública e de incidentes em geral. Urge que outros autarcas com apetites publicitários e fome eleitoral garantam ruas aos mortos em consequência de assaltos à mão armada, acidentes rodoviários, doenças infecto-contagiosas, suicídios, negligência médica e tombos mal dados. Aliás, as vítimas nem precisam de ser mortais: só um coração empedernido negaria praceta ou simples viela a cidadãos diabéticos, órfãos e adeptos do Sporting.
Para terminar com uma nota de erudição, recordo o episódio antigo dos Simpsons no qual um rapazinho acidentado é erguido a herói. Herói porquê? Porque, explica Homer à filha, o rapazinho caiu a um poço e não consegue sair. Não conheço melhor metáfora do nosso tempo e das referências que o guiam.
Sexta-feira, 13 de Março
O FUTURO SEGUNDO A CGTP
O dr. Carvalho da Silva pesou as "informações", os "indicadores" e as "observações" e concluiu: aquela era a maior manifestação de sempre. Outra. O dr. Carvalho da Silva estava radiante. Nada satisfaz tanto um sindicalista quanto ver uma multidão dedicar um dia àquilo a que ele dedica a vida inteira: berrar imenso e não fazer nenhum.
Segundo as "informações", os "indicadores" e tal, a multidão chegou às duzentas mil almas, uma evidência de que neste esfarrapado país há pelo menos duas centenas de milhares de pessoas com disponibilidade para passear em Lisboa durante o expediente. Não admira, já que muitos são funcionários públicos. Nem admira que o dr. Louçã se solidarizasse com os passeantes e falasse em "grande demonstração da força popular". Sem dúvida, mas da parcela do povo capaz de exibir à restante os privilégios de que beneficia.
Mais do que um desafio ao Governo, o qual talvez venha a lucrar com a hipotética legitimação do seu hipotético "reformismo", a manifestação desafiou os que não podem trocar o trabalho por uma tarde primaveril na Baixa a protestar contra a falta dele. Ou, para voltar às palavras do dr. Carvalho da Silva, a "construir o futuro". Na visão sindical, naturalmente, o futuro constrói-se ao sol. Ainda assim, promete ser negro.|
Sociólogo albertog@netcabo.pt
Alberto Gonçalves
DN
ASAS SOB A NAÇÃO
Com uma viagem aos EUA aprazada para breve, deixo-me seduzir por um e-mail da TAP, que garante ida e volta a Newark por quase metade da tarifa normal. Entro no site da companhia, que reproduz a promoção e especifica: voos directos de Lisboa e do Porto. Começo o processo de reserva online, escolho as datas e aguardo. Nas datas pretendidas, e à partida do Porto, a tarifa não está abrangida pelo desconto. Mudo as datas, o resultado é idêntico. Tento a partida de Lisboa e consigo o desconto, embora, hélas, apenas nos voos com escala no Porto. Decerto um erro informático.
Com a reserva por fazer, desisto das novas tecnologias e prossigo através das velhas: telefono à TAP, confiante no novíssimo decreto-lei que obriga os call centers das empresas públicas a atender os clientes em menos de um minuto. No atendimento geral, um gravador a imitar uma menina põe-me em espera. Sete minutos depois, uma menina real digna-se falar-me. Explico-lhe o problema. Decerto informada do decreto-lei, pede-me um minuto para esclarecer a situação. Dou-lhe um, cinco, dez, dezasseis minutos e trinta e dois segundos, período que aproveito para ouvir dezenas de vezes uma publicidade em que a TAP se vangloria de si própria. Bonito, porém cansativo. Desligo. Ligo ao aeroporto e rogo que me transfiram a chamada para o balcão da TAP. Informam-me que o balcão não concede informações por telefone e que é melhor dirigir-me lá pessoalmente.
Maravilhado por adivinharem que vivo a cinco minutos de Pedras Rubras e não em Castelo Branco, parto rumo a Pedras Rubras. No lendário balcão da TAP, preparo-me para desfiar o meu rosário e sou logo interrompido pela funcionária: as promoções não se marcam ali. Marcam-se onde? A senhora não diz. O que a senhora diz, após escrevinhar uns instantes no computador, é que a promoção anunciada (Porto-Newark-Porto) não existe. A tarifa de baixo preço limita-se ao trajecto Lisboa-Porto-Newark-Porto-Lisboa. Dado que entro no Porto, vai dar ao mesmo, não vai? Não vai, corta a funcionária, já que não posso entrar no Porto, excepto se pagar a tarifa normal. Mas o voo não aterra no Porto? Aterra. E então? Tem de entrar em Lisboa. Hã? É assim, conclui a funcionária.
Ainda bem que é assim. Ainda bem que empresas com o gabarito da TAP continuam nas mãos do Estado. Sabe Deus o pandemónio que adviria da privatização.
Quarta-feira, 11 de Março
A VERDADEIRA CRISE
A terça-feira começou com o director do Fundo Monetário Internacional a confirmar a "grande recessão", segundo o sujeito a maior dos últimos 60 anos. Se, como se diz, as crises são também oportunidades, uma crise gigantesca é uma gigantesca oportunidade para os portugueses exibirem a tradicional fleuma e não lhe ligarem nenhuma. Por cá, no máximo, o cidadão comum recebeu as palavras do sr. Strauss-Kahn com um encolher de ombros e o pertinente comentário "Isto vai bonito, vai "
Vinte e quatro horas depois, porém, inúmeros cidadãos comuns telefonavam para as rádios e as televisões em destravado alvoroço. A situação, ao que diziam, era mais do que preocupante: era trágica. No Fórum da TSF, que sintonizei a meio no rádio do carro, um ouvinte garantia: batemos no fundo. Outros ouvintes falavam em "vergonha" e "miséria". A princípio, convenci-me de que, embora com atraso, era o estado da economia a suscitar tamanho drama. Depois, percebi que o drama se prendia com o futebol caseiro em geral e com o Sporting, que perdera por 7-1, em particular.
Nenhuma surpresa. Entre nós, os dramas são peculiares e, em 99% dos casos, de enredo único. Atrás da bola não corre uma criança, mas um português destroçado por uma equipa, um treinador, um dirigente ou um árbitro. Ou, o que é provável, por todos em simultâneo. Em teoria, isto é um bom sinal: se a crise não suscita grande atenção, é porque a crise não é tão grave. Na prática, o sinal é menos bom, visto que, independentemente da depressão económica, é sempre a futebolística que nos aflige. Ainda que o FMI tenha razão e estejamos enfiados no pior buraco desde a IIª Guerra, nada afasta os portugueses das suas prioridades.
Aliás, mesmo que estivéssemos na própria II Guerra, e que os alemães, além de bombardearem o Sporting, bombardeassem literalmente as nossas cabeças, desconfio que milhares de portugueses ignorariam as sirenes antiaéreas e sairiam às ruas a pedir a demissão do sr. Paulo Bento ou lá quem é o culpado pela angustiante situação que atravessamos.
Quinta-feira, 12 de Março
O GPS DO INFORTÚNIO
Parece que, após ouvir na rádio a história de uma mulher assassinada pelo namorado, o dr. Carlos Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Coimbra, decidiu baptizar uma rua da cidade com o nome da falecida. Para não perder a deixa, o dr. Moita-Flores, famoso comentador televisivo e menos famoso edil, anunciou iniciativa semelhante em Santarém. Ambos os gestos provavelmente indiciam uma moda que, até às "autárquicas", varrerá a nação de norte a sul: imortalizar os alvos de companheiros psicóticos, enquanto, diga-se de passagem, os companheiros psicóticos são jovialmente mandados em paz pela polícia (sucedeu agora em Portimão).
No mínimo, a tendência é curiosa. Com acerto discutível, a toponímia tradicional ficava-se por exemplos de bravura, inovação, eficácia, criatividade, generosidade, etc. As senhoras em questão são exemplos do quê? Do azar? De péssimas escolhas sentimentais? Do lado negro do casamento (um alerta aos gays)? E o que rezarão as placas, "Avenida Manuela Pires, Receptora de Tareias Conjugais (1977 - 2009)"? Sinceramente, não sei.
Sei que, se a ideia é transformar os desafortunados em modelos, não há razão para que as vítimas de violência doméstica mereçam mais atenção que as vítimas de violência pública e de incidentes em geral. Urge que outros autarcas com apetites publicitários e fome eleitoral garantam ruas aos mortos em consequência de assaltos à mão armada, acidentes rodoviários, doenças infecto-contagiosas, suicídios, negligência médica e tombos mal dados. Aliás, as vítimas nem precisam de ser mortais: só um coração empedernido negaria praceta ou simples viela a cidadãos diabéticos, órfãos e adeptos do Sporting.
Para terminar com uma nota de erudição, recordo o episódio antigo dos Simpsons no qual um rapazinho acidentado é erguido a herói. Herói porquê? Porque, explica Homer à filha, o rapazinho caiu a um poço e não consegue sair. Não conheço melhor metáfora do nosso tempo e das referências que o guiam.
Sexta-feira, 13 de Março
O FUTURO SEGUNDO A CGTP
O dr. Carvalho da Silva pesou as "informações", os "indicadores" e as "observações" e concluiu: aquela era a maior manifestação de sempre. Outra. O dr. Carvalho da Silva estava radiante. Nada satisfaz tanto um sindicalista quanto ver uma multidão dedicar um dia àquilo a que ele dedica a vida inteira: berrar imenso e não fazer nenhum.
Segundo as "informações", os "indicadores" e tal, a multidão chegou às duzentas mil almas, uma evidência de que neste esfarrapado país há pelo menos duas centenas de milhares de pessoas com disponibilidade para passear em Lisboa durante o expediente. Não admira, já que muitos são funcionários públicos. Nem admira que o dr. Louçã se solidarizasse com os passeantes e falasse em "grande demonstração da força popular". Sem dúvida, mas da parcela do povo capaz de exibir à restante os privilégios de que beneficia.
Mais do que um desafio ao Governo, o qual talvez venha a lucrar com a hipotética legitimação do seu hipotético "reformismo", a manifestação desafiou os que não podem trocar o trabalho por uma tarde primaveril na Baixa a protestar contra a falta dele. Ou, para voltar às palavras do dr. Carvalho da Silva, a "construir o futuro". Na visão sindical, naturalmente, o futuro constrói-se ao sol. Ainda assim, promete ser negro.|
Sociólogo albertog@netcabo.pt
Alberto Gonçalves
DN