Uma crise, um só mundo

Kemal Dervis e Juan Somavia
Uma crise, um só mundo
© Project Syndicate, 2008. www.project-syndicate.org
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À medida que a recessão se propaga por todo o mundo, as redes de produção globais que surgem com a globalização da economia mundial transformaram-se em fontes de redução da produção e de supressão de postos de trabalho. O adiamento das compras de novos casacos de Inverno nos Estados Unidos significa a perda de empregos na Polónia ou na China.
Estas perdas traduzem-se depois numa diminuição da procura de máquinas-ferramenta americanas ou alemãs.
O desemprego e a quebra das vendas repercutem-se em seguida sob a forma de novas perdas nas carteiras de empréstimos dos bancos, debilitando ainda mais o sector financeiro, que já está bastante castigado. Consequentemente, a ansiedade, a falta de esperança e a raiva estão a disseminar-se, à medida que aquilo que era uma crise financeira se torna numa crise económica e humana. Se se descontrolar, poderá tornar-se numa crise de segurança.
Tentar resgatar o sector financeiro sem apoiar uma recuperação em termos de empresas, de postos de trabalho e de poder de compra das famílias será um esforço que não irá resultar. Precisamos é de um forte estímulo orçamental, à escala mundial, para contrabalançar a queda da procura dos consumidores privados.
A capacidade de actuação dos diferentes países depende do seu nível de endividamento, das suas reservas em divisa estrangeira e dos défices das suas contas correntes. A Alemanha e a China podem fazer mais do que restantes. Os Estados Unidos podem fazer muito, em parte devido ao estatuto do dólar de principal moeda internacional de reserva. As baixas taxas de juro significam que o encargo adicional da dívida que será criada pelo endividamento público continuará a ser suportável.
Além disso, se os planos de relançamento forem bem sucedidos e permitirem uma rápida recuperação económica, o rendimento adicional que daí decorrerá poderá mais do que compensar o aumento do endividamento. Tendo em conta a queda dos preços das matérias-primas e a sobrecapacidade de produção, não existe perigo de inflação no curto prazo, mesmo que parte do estímulo orçamental seja directamente financiado pelos bancos centrais.
Os argumentos a favor de um forte estímulo orçamental são poderosos. Vários países já anunciaram medidas nesse sentido, mas é preciso avaliar a quanto ascendem na realidade. A título de exemplo, alguns desses planos de relançamento baseiam-se na entrada em circulação de dinheiro "fresco", ao passo que outros representam compromissos já existentes e que estão em fase de progressão. E é preciso também avaliar a qualidade desses planos.
O relançamento da economia deve ser preferencialmente levado a cabo por meio do aumento das despesas públicas em vez de se basear em, suponhamos, reduções de impostos, porque os consumidores em pânico poderão querer poupar o dinheiro em vez de o gastarem. A dívida e a inflação reaparecerão como problemas de médio prazo, por isso é muito importante que o pacote de estímulo orçamental contribua para a produtividade, crescimento e sustentabilidade de longo prazo.
Evidentemente que o estímulo orçamental não significa uma simples injecção de liquidez onde existem problemas. É necessária uma estratégia e é preciso que se ponderem as prioridades e que se analisem as provas empíricas. Devemos também recordar-nos que o crescimento que se registar na economia mundial em 2009-2010 provirá essencialmente das economias em desenvolvimento. Por isso, também as políticas de apoio ao seu crescimento contribuirão fortemente para melhorar as perspectivas das economias desenvolvidas.
Cada país poderá esperar que os restantes estimulem a sua procura, enquanto este preserva a sua margem de manobra orçamental, contando assim com as exportações como o motor da recuperação. Cada país poderá ser também tentado a enveredar por medidas proteccionistas, tentando preservar os postos de trabalho a nível interno, em detrimento das importações. Na década de 30, estas políticas de "mendigar em casa do vizinho" agravaram e aprofundaram a Grande Depressão.
A indústria automóvel constitui um bom exemplo. As medidas tomadas por um determinado país para manter a indústria à tona podem parecer uma forma de concorrência desleal para outros países. Mas a solução é não permitir que um colapso no sector automóvel mundial alimente uma recessão ainda mais profunda. A solução é coordenar um pacote de relançamento global, que crie a oportunidade de direccionar a recuperação para uma nova geração de veículos com baixas emissões de dióxido de carbono e mais eficientes em termos energéticos, bem como empregos "verdes".
Os países soberanos terão a última palavra no que diz respeito aos seus planos de relançamento, mas a coordenação global contribuirá para aumentar a eficácia das medidas tomadas por todos. Além disso, as considerações relativas à justiça e à segurança exigem que os mais vulneráveis, que não tiveram qualquer responsabilidade por esta crise, recebam apoio.
A ampliação das redes de segurança social ajuda os mais vulneráveis e é provável que tenha elevados efeitos multiplicadores, pois a necessidade de consumir é mais urgente para as pessoas mais pobres. Deve haver um aumento significativo dos programas de formação, incluindo os destinados a criar empregos ecológicos. A despesa pública deve focalizar-se em programas com uma importante componente de emprego, como por exemplo os projectos de infra-estruturas em pequena e média escala e o apoio às administrações locais.
Devem também manter-se abertas linhas de crédito para as empresas de menor dimensão, que empregam grande parte dos trabalhadores de todo o mundo, mas que são as que menos acesso têm ao crédito. Além disso, deve recorrer-se mais ao diálogo social, de modo a gerir a crise, dado que é preciso devolver a confiança a quem a perdeu. Os doadores têm de manter os níveis prometidos (e que são muito modestos) de ajuda ao desenvolvimento dos países mais pobres e deve ser renovado o compromisso de ajuda à concretização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. O financiamento do comércio deve estar também mais acessível e disponível.
As instituições de Bretton Woods têm também um papel-chave a desempenhar. O Fundo Monetário Internacional e os bancos centrais deveriam aumentar a liquidez de maneira coordenada, sob a forma de crédito de curto prazo às economias emergentes que estão a braços com os menores fluxos de capital e com a redução das receitas provenientes das exportações. O Banco Mundial deveria aumentar os empréstimos, para ajudar a financiar as despesas de apoio ao crescimento nos países em desenvolvimento. É preciso um progresso palpável ao nível das negociações comerciais globais, de forma a mostrar que a economia mundial continuará aberta.
Enquanto estas medidas de relançamento são postas em prática, o mundo tem também que ir criando instituições para a economia do século XXI. A Agenda para o Trabalho Decente, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), baseada no emprego e no empreendedorismo, na protecção social, nas relações laborais sãs e nos direitos fundamentais no local de trabalho criam uma plataforma sólida para um processo justo de globalização.
Qualquer crise constitui também uma oportunidade. Esta crise demonstrou que os destinos dos países de todo o mundo estão ligados. A coordenação das políticas governamentais e uma estratégia global que incuta confiança e crie esperança permitirão uma recuperação económica mais rápida e mais sólida para todos nós.
Jornal Negócios
Uma crise, um só mundo
© Project Syndicate, 2008. www.project-syndicate.org
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À medida que a recessão se propaga por todo o mundo, as redes de produção globais que surgem com a globalização da economia mundial transformaram-se em fontes de redução da produção e de supressão de postos de trabalho. O adiamento das compras de novos casacos de Inverno nos Estados Unidos significa a perda de empregos na Polónia ou na China.
Estas perdas traduzem-se depois numa diminuição da procura de máquinas-ferramenta americanas ou alemãs.
O desemprego e a quebra das vendas repercutem-se em seguida sob a forma de novas perdas nas carteiras de empréstimos dos bancos, debilitando ainda mais o sector financeiro, que já está bastante castigado. Consequentemente, a ansiedade, a falta de esperança e a raiva estão a disseminar-se, à medida que aquilo que era uma crise financeira se torna numa crise económica e humana. Se se descontrolar, poderá tornar-se numa crise de segurança.
Tentar resgatar o sector financeiro sem apoiar uma recuperação em termos de empresas, de postos de trabalho e de poder de compra das famílias será um esforço que não irá resultar. Precisamos é de um forte estímulo orçamental, à escala mundial, para contrabalançar a queda da procura dos consumidores privados.
A capacidade de actuação dos diferentes países depende do seu nível de endividamento, das suas reservas em divisa estrangeira e dos défices das suas contas correntes. A Alemanha e a China podem fazer mais do que restantes. Os Estados Unidos podem fazer muito, em parte devido ao estatuto do dólar de principal moeda internacional de reserva. As baixas taxas de juro significam que o encargo adicional da dívida que será criada pelo endividamento público continuará a ser suportável.
Além disso, se os planos de relançamento forem bem sucedidos e permitirem uma rápida recuperação económica, o rendimento adicional que daí decorrerá poderá mais do que compensar o aumento do endividamento. Tendo em conta a queda dos preços das matérias-primas e a sobrecapacidade de produção, não existe perigo de inflação no curto prazo, mesmo que parte do estímulo orçamental seja directamente financiado pelos bancos centrais.
Os argumentos a favor de um forte estímulo orçamental são poderosos. Vários países já anunciaram medidas nesse sentido, mas é preciso avaliar a quanto ascendem na realidade. A título de exemplo, alguns desses planos de relançamento baseiam-se na entrada em circulação de dinheiro "fresco", ao passo que outros representam compromissos já existentes e que estão em fase de progressão. E é preciso também avaliar a qualidade desses planos.
O relançamento da economia deve ser preferencialmente levado a cabo por meio do aumento das despesas públicas em vez de se basear em, suponhamos, reduções de impostos, porque os consumidores em pânico poderão querer poupar o dinheiro em vez de o gastarem. A dívida e a inflação reaparecerão como problemas de médio prazo, por isso é muito importante que o pacote de estímulo orçamental contribua para a produtividade, crescimento e sustentabilidade de longo prazo.
Evidentemente que o estímulo orçamental não significa uma simples injecção de liquidez onde existem problemas. É necessária uma estratégia e é preciso que se ponderem as prioridades e que se analisem as provas empíricas. Devemos também recordar-nos que o crescimento que se registar na economia mundial em 2009-2010 provirá essencialmente das economias em desenvolvimento. Por isso, também as políticas de apoio ao seu crescimento contribuirão fortemente para melhorar as perspectivas das economias desenvolvidas.
Cada país poderá esperar que os restantes estimulem a sua procura, enquanto este preserva a sua margem de manobra orçamental, contando assim com as exportações como o motor da recuperação. Cada país poderá ser também tentado a enveredar por medidas proteccionistas, tentando preservar os postos de trabalho a nível interno, em detrimento das importações. Na década de 30, estas políticas de "mendigar em casa do vizinho" agravaram e aprofundaram a Grande Depressão.
A indústria automóvel constitui um bom exemplo. As medidas tomadas por um determinado país para manter a indústria à tona podem parecer uma forma de concorrência desleal para outros países. Mas a solução é não permitir que um colapso no sector automóvel mundial alimente uma recessão ainda mais profunda. A solução é coordenar um pacote de relançamento global, que crie a oportunidade de direccionar a recuperação para uma nova geração de veículos com baixas emissões de dióxido de carbono e mais eficientes em termos energéticos, bem como empregos "verdes".
Os países soberanos terão a última palavra no que diz respeito aos seus planos de relançamento, mas a coordenação global contribuirá para aumentar a eficácia das medidas tomadas por todos. Além disso, as considerações relativas à justiça e à segurança exigem que os mais vulneráveis, que não tiveram qualquer responsabilidade por esta crise, recebam apoio.
A ampliação das redes de segurança social ajuda os mais vulneráveis e é provável que tenha elevados efeitos multiplicadores, pois a necessidade de consumir é mais urgente para as pessoas mais pobres. Deve haver um aumento significativo dos programas de formação, incluindo os destinados a criar empregos ecológicos. A despesa pública deve focalizar-se em programas com uma importante componente de emprego, como por exemplo os projectos de infra-estruturas em pequena e média escala e o apoio às administrações locais.
Devem também manter-se abertas linhas de crédito para as empresas de menor dimensão, que empregam grande parte dos trabalhadores de todo o mundo, mas que são as que menos acesso têm ao crédito. Além disso, deve recorrer-se mais ao diálogo social, de modo a gerir a crise, dado que é preciso devolver a confiança a quem a perdeu. Os doadores têm de manter os níveis prometidos (e que são muito modestos) de ajuda ao desenvolvimento dos países mais pobres e deve ser renovado o compromisso de ajuda à concretização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. O financiamento do comércio deve estar também mais acessível e disponível.
As instituições de Bretton Woods têm também um papel-chave a desempenhar. O Fundo Monetário Internacional e os bancos centrais deveriam aumentar a liquidez de maneira coordenada, sob a forma de crédito de curto prazo às economias emergentes que estão a braços com os menores fluxos de capital e com a redução das receitas provenientes das exportações. O Banco Mundial deveria aumentar os empréstimos, para ajudar a financiar as despesas de apoio ao crescimento nos países em desenvolvimento. É preciso um progresso palpável ao nível das negociações comerciais globais, de forma a mostrar que a economia mundial continuará aberta.
Enquanto estas medidas de relançamento são postas em prática, o mundo tem também que ir criando instituições para a economia do século XXI. A Agenda para o Trabalho Decente, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), baseada no emprego e no empreendedorismo, na protecção social, nas relações laborais sãs e nos direitos fundamentais no local de trabalho criam uma plataforma sólida para um processo justo de globalização.
Qualquer crise constitui também uma oportunidade. Esta crise demonstrou que os destinos dos países de todo o mundo estão ligados. A coordenação das políticas governamentais e uma estratégia global que incuta confiança e crie esperança permitirão uma recuperação económica mais rápida e mais sólida para todos nós.
Jornal Negócios