Por HELENA MATOS
Sábado, 15 de Fevereiro de 2003
No mundo ocidental, no ano de 2003, não estamos entre a guerra e a paz. Estamos entre a guerra e a chantagem. Só resta saber até onde podemos ceder à chantagem, sem pormos em causa a nossa própria segurança
"Guerra e Paz" é o título dum romance. Não é infelizmente uma opção que possamos fazer na Europa no ano de 2003. Tal como não o foi muito frequentemente no passado. "A posteriori" admiramo-nos com a ingenuidade dos que cederam tudo para fazerem a paz com quem não a queria ter. Mas só nos admiramos "a posteriori" porque, no momento em que a questão se coloca, ceder é sempre mais fácil. O inferno e os campos de batalha estão cheios de belicistas, mas não faltam lá também aqueles que quiseram a paz a qualquer preço.
No mundo ocidental, no ano de 2003, não estamos entre a guerra e a paz. Estamos entre a guerra e a chantagem. Só resta saber até onde podemos ceder à chantagem, sem pormos em causa a nossa própria segurança. Com a Coreia do Norte a estratégia de ceder à chantagem revelou-se uma armadilha: durante anos, à Coreia do Norte foram oferecidos combustíveis e alimentos. Em troca os dirigentes daquele país comprometiam-se a não desenvolverem programas nucleares. Em 2003, chegam todos os dias tonitruantes comunicados provenientes de Pyongyang prometendo reduzir a cinzas a Coreia do Sul, os EUA ou o Japão, pois a Coreia do Norte já possui uma ou duas bombas nucleares e prepara-se para testar mísseis de longo alcance com capacidade para atingirem os EUA e o Japão.
E agora espera-se que o "Querido Líder" continue a fazer avançar e recuar na cena internacional essas bombas, como se estivesse a brincar com a sua colecção de combóios eléctricos? Aguarda-se que o Japão ataque preventivamente? Que a China resolva o problema com a eficácia do aparelho comunista e a desenvoltura do capitalismo? Que a Hyundai suborne mais alguns altos dirigentes norte-coreanos? E se a Coreia do Norte atacar e matar milhares de pessoas, acendem-se-lhes umas velas por alma e diz-se que há que dar uma oportunidade à paz?
A grande questão é até onde é que, em nome da paz, se pode ir nas cedências? No caso da Coreia do Norte foi-se claramente longe de mais e tal como se devem exigir responsabilidades aos governos que atacam ou se propõem atacar sem fundamento outros países, é também imperioso que se questionem os governos que colocam os seus povos em situações extremas de vulnerabilidade. É esta pergunta que tem de ser feita no caso da Coreia do Norte e é também esta pergunta que, no caso do Iraque, se deve colocar aos governos alemão, belga e francês.
Não possuindo Saddam bombas como a Coreia do Norte, e apenas armas químicas e biológicas, até onde podemos ceder sem corrermos o risco de pormos a nossa vida em risco? Quantos milhões de europeus estão dispostos a morrer em consequência do antraz que Saddam tem? Ou por envenenamento das águas como os curdos? Ou por um ataque como o do 11 de Setembro nos EUA? Ou a verem os seus filhos serem mortos quando vão a caminho da escola, porque um suicida que os acha infiéis se lhes atravessou no caminho?
Não basta declarar, como fez o ministro alemão Joscka Fisher, que não está convencido de que o Iraque seja um perigo para os outros países. Uma não convicção chegaria, se Joscka Fisher fosse apenas mais um militante dos Verdes alemães. Mas Joscka Fischer é ministro. Uma não convicção chega aos manifestantes do não à guerra. Uma não convicção não pode chegar àqueles que são governo ou que aspiram a sê-lo.
Quem diz que não está convicto que o Iraque seja um perigo devia estar convicto que de facto não o é. E, na falta dessa convicção teria, pelo menos, de estar convicto de que tem meios materiais e humanos e vontade política para assegurar que Saddam não é um perigo agora, nem o seria no futuro, caso o propósito norte-americano de atacar o Iraque seja posto de lado.
Infelizmente a "Operação Miragem", proposta pela França e pela Alemanha como a última oportunidade para a paz no Iraque, parece mais uma forma de protelar um ataque do que uma real alternativa a esse ataque. Alguém acredita que é exequível e seguro ocupar o Iraque com milhares de "capacetes azuis", mantendo Saddam formalmente no poder, como propõem a França e a Alemanha? E mesmo que tal operação fosse em frente, que países envolveriam directamente as suas forças armadas no acompanhamento desta operação durante o tempo que for necessário? A França e a Alemanha? Este tipo de operações exige um empenhamento, uma coordenação e uma vontade política que a Europa infelizmente está longe de ter, como se viu no conflito jugoslavo. Quem acredita de facto que a União Europeia, que há anos fecha piedosamente os olhos ao que se passa na Argélia e em Israel, se dispõe agora a ver morrer os seus soldados no deserto iraquiano?
Atacar um país não é algo de desejável, mas, em determinadas circunstâncias, pode ser a melhor solução. Foi-o, por exemplo, no Afeganistão. Hoje, por muito mal que se viva no Afeganistão, vive-se incomensuravelmente melhor do que antes da intervenção militar. Aliás, não por acaso o Presidente daquele país, Hamid Karzai, se mostra preocupado com o facto de que um ataque ao Iraque possa fazer diminuir a ajuda internacional ao Afeganistão. Karzai tem certamente razões para estar preocupado, tanto mais que a atenção dos tradicionais militantes ocidentais das boas causas só será desperta, caso suceda alguma catástrofe e muito particularmente se na origem dessa catástrofe estiverem militares americanos. Contudo, quando uma intervenção militar é bem sucedida, os seus detractores jamais se lhe referem. Nestas mesmas páginas defendi a intervenção militar no Afeganistão. Até agora não vi uma linha das pessoas que a condenaram analisando o que mudou ou o que devia mudar naquele país.
Todos os dias há quem aproveite as liberdades das democracias ocidentais para melhor as atacar - esta semana, em Itália, foram postos em liberdade 28 paquistaneses em cujo local de residência tinham sido encontrados explosivos. Argumentou a defesa dos detidos que estes desconheciam a existência deste material na sua casa, dada a desarrumação da mesma. Provavelmente poucos acreditarão neste argumento da defesa, mas, dada a incapacidade de se provar a acusação, os detidos foram postos em liberdade. E não devia ser doutro modo, porque é de actos como este que nasce a liberdade e a qualidade de vida de que se usufrui nas democracias. Mas a defesa da liberdade e da democracia passa também por ser capaz de assumir decisões. O "nim" expresso por Joscka Fischer é mais do que meio caminho andado para, dentro de algum tempo, cairmos na armadilha duma guerra inimaginavelmente pior do que aquela que se procurou evitar.
A defesa da paz, ou, melhor dizendo, a defesa da ausência da guerra, não pode implicar que cada um de nós viva com uma certidão de óbito endossada em seu nome, para Saddam, Bin Laden, Kim Jong-il ou outro qualquer fanático preencherem o espaço reservado à data, quando lhes apetecer.