Outros sites Medialivre
Caldeirão da Bolsa

Manoel de Oliveira

Espaço dedicado a todo o tipo de troca de impressões sobre os mercados financeiros e ao que possa condicionar o desempenho dos mesmos.

O Manel tem sabido viver

por Bico de pato » 9/11/2002 23:23

agarrou-se á vam glória de mandar e sacou uns coisos
Bico de pato
 

Manoel de Oliveira

por R_Martins » 9/11/2002 23:20

Manoel de Oliveira



Realizador de Cinema, 93 anos

«Resignamo-nos de ser feios ou gordos ou maus, ou burros. Aceitamos. Somos assim»



Há pessoas que têm a felicidade de morrer cedo, por isso não sofrem as coisas desagradáveis. A minha primeira infelicidade é ter nascido. A segunda já é e não é, na medida em que tenho a minha mulher e tenho filhos e netos. Isso é para mim uma alegria. Não tenho razão de queixa da minha infância. Não me faltava nada, mas no fundo tinha uma profunda tristeza interior. Uma certa vontade de não viver, mas sem vontade de me matar. A imagem mais antiga que guardo desse período remonta às raras alturas em que ficava só em casa, porque sempre fui possuído de medos. Medos de nada e medos de tudo. O meu quarto ficava ao lado do hall e havia uma escada larga. Quando estava só, de noite, já deitado, sentia uns passos que subiam os degraus e se me figuravam um leão. Ouvia o bater do coração no travesseiro. Sabia que era impossível haver um leão ali, mas ele ali estava e o medo era real. Só quando sentia a chave dos meus pais a abrirem a porta, desaparecia o leão e o medo e adormecia tranquilo. Sempre tive muito medo de tudo. Ainda hoje tenho medo. Medo e revolta. O medo gera a revolta, porque a causa do medo é qualquer coisa de mau. Essa revolta é a vontade de destruir a causa do mal. A revolta vem de tudo quanto é injusto. Por isso não somos indiferentes às guerras. Tomamos paixões por um ou outro lado. Agora, mais que nunca, há motivos para revolta, porque no mundo contemporâneo há uma consciência que não havia anteriormente. É algo que cresce connosco e com a idade do Mundo. O homem primitivo não tinha o mesmo sentido de humanismo ou direitos do homem. Vivia de um modo mais instintivo ou impetuoso. Penso eu, porque não vivi nesse tempo pré-histórico, mas a época em que vivemos não deixa de ser também bastante pré-histórica. Veja-se o Hitler. Era inteligente, mas estava longe da pedra da bondade. A sua inteligência não serve, não presta, é perniciosa. Era muito novo quando veio a primeira guerra e já ultrapassava a idade para ir para militar quando veio a II Guerra, que foi muito mais trágica que a primeira, mas nunca nenhum filme falou da presença dos portugueses na Guerra de 14. Morreu muita gente naquelas batalhas. Punham-nos à frente, como carne para canhão.

As mortes atormentam-nos sempre, como a do meu pai. O grande golpe foi quando tive a confirmação de que ele estava perdido e tinha poucos meses de vida. Sofreu durante 12 anos. Há, nestas circunstâncias, um sofrimento muito profundo, que vem pela consciência do impossível. Sofre-se como se sofre com uma tempestade: nada podemos fazer. É um sofrimento especial, que nos mói por dentro de uma forma muito lenta e muito discreta. Não se traduz em choros ou gritos, mas está lá, fundo. Há um sentimento que nos é dado pela natureza que é o da resignação. Resignamo-nos de ser feios ou gordos ou maus, ou burros. Aceitamos. Somos assim. É inútil esse tipo de infelicidade de querer ser outro. Isso nunca tive. Sou quem sou, com todas as minhas imperfeições e insuficiências. Não queria ser outra pessoa, nem mais inteligente, nem sábio, nem um grande génio. Por isso, só me arrependo do que não tenha feito.

Assusta-me a palavra criador. Nós não somos o criador. Não sei quem é o criador. Não o conheço. Não é com a clonagem que o homem se torna criador. O homem é sempre uma pobre e triste criatura. É assustador quando se crê um criador, quando não o é de coisa nenhuma. Não repete mais nada do que já existe na natureza. O homem é uma pobre e reles criatura. Reles pelo que se vê por aí. Quanto ao artista, pode ser reles, mas o seu trabalho é sempre são. Nada do que o artista faz é reles, porque nesse caso já não seria artista. O que se faz actualmente é reles. Para haver audiências, faz-se lixo. Vale a pena haver televisões para fazer lixo? Para que tenham audiência? A televisão é um mal terrível, no que faz de provocação, no que faz de sexo por sexo, violência por violência. É contagioso, propaga-se como um vírus. As pessoas acabam por matar só porque apanharam o vírus. Não sou um moralista, mas se os meninos de hoje não forem bem educados, bem preparados, temos ali uma escola de terrorismo. E o que é o futuro se vão ser essas crianças o povo de amanhã? Que coisa vai ser esse amanhã? Por isso digo que se coloco a saúde em primeiro lugar, logo a seguir vem a educação.

Ninguém vive verdadeiramente com cepticismo. Todos vivemos na esperança de que as coisas melhorem, de que haja outra consciência. Que tudo seja corrigido. Se começarmos hoje, teremos a certeza que amanhã será melhor. Mas é preciso começar. O sentido de liberdade tem como primeira obrigação um dever: o respeito pelo próximo. Se não há respeito pelo próximo, não há dignidade. A censura é péssima. O artista tem de ser absolutamente livre. Não há obra nenhuma válida onde o artista esteja comandado, seja por pressões económicas, seja por pressões políticas, seja por grupos. Mas isso existe. Ainda que não exista a censura, há uma outra censura, a de não falar deste homem, a de dizer mal daquele por raiva. Isto é um outro tipo de censura, e muito mais grave, porque é anónima. Nunca assina. A censura de antigamente já não faz mal nenhum. O que faz mal é a actual. Essa é que é grave. A discriminarão actual, que é um tipo de censura, é gravíssima. A outra já passou. Claro que toda a gente a reprova, mas também é de reprovar o que se passa agora.

Considero o 25 de Abril um fenómeno extraordinário, com uma coisa esplêndida: a primeira, a mais forte, é que não houve sangue. A segunda, é que dos capitães de Abril, nenhum deles quis tomar o poder. São dois pontos fulcrais. Foi um exemplo para o mundo e desencadeou uma série de coisas até a queda do Muro de Berlim. Foi aqui que tudo nasceu. As pessoas não querem levar isso tão adiante, mas eu levo. É um acto que supera os próprios autores do acto, tão rico ele é.

Não se tem consciência de ser feliz. Para mim a felicidade é um momento passado. O gozo da felicidade não dá essa consciência. É uma plenitude do momento que não tem consciência disso mesmo. Pode ter mais tarde. Não dou conselhos a ninguém e não me preocupa o mudar de opinião. Há coisas intemporais e outras temporais. Essas alteram com a evolução da sociedade e da vida. O que é preciso é ter um critério do que é bem e do que é mal. Essa noção permanece. Não existe o bem sem o mal.

Manoel de oliveira
Quem não conhece o «CALDEIRÃO» não conhece este mundo
 
Mensagens: 1611
Registado: 5/11/2002 9:23


Quem está ligado:
Utilizadores a ver este Fórum: AAA_, Bing [Bot], Google [Bot], Google Adsense [Bot], PAULOJOAO, Silvarangelm e 352 visitantes