in bpi
O novo merceeiro
04/04/2006 14:02
Divergindo-o da poesia do Matos, esse pai-poeta, descarrilado da vida moderna, dançarino desencontrado dos novos ritmos e dos modos de traçar o parceiro.
Mas algum mérito, reconheça-se, já nasceu com o rapaz, pois cedo lhe assomou a veia de lucidez, quando subtraiu o pai do quadro de referências, ao escutar-lhe as histórias de cabulanço colectivo.
Os rituais insanos, de «outros tempos», quando os alunos se entreajudavam nos exames, segredando soluções, imagine-se - «certas» - a perguntas das provas.
«O meu pai ensandeceu» - pensou, na altura, o borbulhento «génio», percebendo que a partir dali iluminaria o seu percurso de vida por farol próprio, órfão que se assumia do exemplo paterno.
Cunha foi aligeirando o jogo de cintura, a troca de pés e de tabuleiros, adquirida que estava a evidência de os bípedes à sua volta não passarem de degraus de uma escada. Com utilidade dispensável, se galgáveis aos pares.
O canudo universitário saiu-lhe, assim, brilhante e laudado. Catana afiada, pronta a cortar a direito, na selva da sobrevivência.
O Matos, esse pai, ainda poeta, confiou-lhe a gestão da tipografia familiar. Há gerações ganha-pão de cinco almas e outras tantas proles.
O Cunha ainda concedeu um «bom-dia» àquela subgente antes de mergulhar entre as lombadas contabilísticas.
Naquela primeira manhã confirmou a suspeita até ali alimentada. Seu pai há muito se despedira da sanidade, transformando a empresa num arco-íris de desbarato. Uma sociedade de beneficência, bebedor para toda a passarada.
Cunha iluminou-se no próprio génio. Que nunca parava de o deslumbrar. «Meu Deus! Que cambada de incompetentes me precedeu!» - declamou ele, sem se aperceber que, no fulgor da excitação, vocalizava o seu inebriar.
Cunha alinhou-os a todos numa folha pautada. Por números. Sem nomes, passado ou currículo.
De um lado, o saldo contabilístico. Do outro, o alvo a atingir. Como ele tinha absorvido. Do cadeirame universitário.
Feitas as contas, era preciso «cortar» três deles. I.e. «Encargos».
O Cunha ofereceu dois meses de salário, por ano de serviço, a quem rescindisse de imediato, conquistando apenas um. O pilar do saber da empresa, que à beira da reforma, bom jeito lhe dava esta prenda inesperada. O Cunha surpreendeu-se com a fraca resposta mas não baixou os braços.
«A partir de hoje, esta empresa passa a funcionar por turnos consecutivos para rentabilizar os equipamentos» - anunciou. »Cada um de vós passa a trabalhar seis horas consecutivas em polivalência de funções. Essa é a chave do vosso futuro!» - acrescentou ele.
Os quatro olharam-se entre si. A Emingarda, «assistente de limpeza» reluzia de felicidade, antecipando o «salto» profissional. Tal como o Nelo, um daqueles que nem à custa do tal cabulanço colectivo, entretanto defunto, conseguira evitar sucessivos chumbos.
O Cunha olhou o Jonas. «Designer» e alma sobrevivente da tipografia. O pilar a vergar, bem sabia ele, já que o currículo do «Brotas» era o de um pau-mandado, alma guardadora de lágrimas e dores no decoro privado. Jonas não respondeu. De imediato. O terreno à sua volta era insano mas real.
Ou assim tornado. Emingarda certamente aprenderia a ligar e desligar as máquinas e o Brotas a traçar os riscos. E isso bastava para os papeis continuarem a ser impressos.
Com mais ou menos erros, com pouco ou nenhum brilho. Adereços secundários, no rescaldo contabilístico imediato.
No dia a seguir, Cunha esfregava as mãos de contente; acabara de receber um telefonema do Jonas. Aquela sanguessuga arranjara emprego na tipografia mais abaixo na rua.
Atirando-o a ele Cunha e Cunha, para o quadro de honra dos gestores modernos.
Hoje acertam-se as contas, quem vier depois que recupere o talento. Ou apague a luz.
...
O novo merceeiro
04/04/2006 14:02
Divergindo-o da poesia do Matos, esse pai-poeta, descarrilado da vida moderna, dançarino desencontrado dos novos ritmos e dos modos de traçar o parceiro.
Mas algum mérito, reconheça-se, já nasceu com o rapaz, pois cedo lhe assomou a veia de lucidez, quando subtraiu o pai do quadro de referências, ao escutar-lhe as histórias de cabulanço colectivo.
Os rituais insanos, de «outros tempos», quando os alunos se entreajudavam nos exames, segredando soluções, imagine-se - «certas» - a perguntas das provas.
«O meu pai ensandeceu» - pensou, na altura, o borbulhento «génio», percebendo que a partir dali iluminaria o seu percurso de vida por farol próprio, órfão que se assumia do exemplo paterno.
Cunha foi aligeirando o jogo de cintura, a troca de pés e de tabuleiros, adquirida que estava a evidência de os bípedes à sua volta não passarem de degraus de uma escada. Com utilidade dispensável, se galgáveis aos pares.
O canudo universitário saiu-lhe, assim, brilhante e laudado. Catana afiada, pronta a cortar a direito, na selva da sobrevivência.
O Matos, esse pai, ainda poeta, confiou-lhe a gestão da tipografia familiar. Há gerações ganha-pão de cinco almas e outras tantas proles.
O Cunha ainda concedeu um «bom-dia» àquela subgente antes de mergulhar entre as lombadas contabilísticas.
Naquela primeira manhã confirmou a suspeita até ali alimentada. Seu pai há muito se despedira da sanidade, transformando a empresa num arco-íris de desbarato. Uma sociedade de beneficência, bebedor para toda a passarada.
Cunha iluminou-se no próprio génio. Que nunca parava de o deslumbrar. «Meu Deus! Que cambada de incompetentes me precedeu!» - declamou ele, sem se aperceber que, no fulgor da excitação, vocalizava o seu inebriar.
Cunha alinhou-os a todos numa folha pautada. Por números. Sem nomes, passado ou currículo.
De um lado, o saldo contabilístico. Do outro, o alvo a atingir. Como ele tinha absorvido. Do cadeirame universitário.
Feitas as contas, era preciso «cortar» três deles. I.e. «Encargos».
O Cunha ofereceu dois meses de salário, por ano de serviço, a quem rescindisse de imediato, conquistando apenas um. O pilar do saber da empresa, que à beira da reforma, bom jeito lhe dava esta prenda inesperada. O Cunha surpreendeu-se com a fraca resposta mas não baixou os braços.
«A partir de hoje, esta empresa passa a funcionar por turnos consecutivos para rentabilizar os equipamentos» - anunciou. »Cada um de vós passa a trabalhar seis horas consecutivas em polivalência de funções. Essa é a chave do vosso futuro!» - acrescentou ele.
Os quatro olharam-se entre si. A Emingarda, «assistente de limpeza» reluzia de felicidade, antecipando o «salto» profissional. Tal como o Nelo, um daqueles que nem à custa do tal cabulanço colectivo, entretanto defunto, conseguira evitar sucessivos chumbos.
O Cunha olhou o Jonas. «Designer» e alma sobrevivente da tipografia. O pilar a vergar, bem sabia ele, já que o currículo do «Brotas» era o de um pau-mandado, alma guardadora de lágrimas e dores no decoro privado. Jonas não respondeu. De imediato. O terreno à sua volta era insano mas real.
Ou assim tornado. Emingarda certamente aprenderia a ligar e desligar as máquinas e o Brotas a traçar os riscos. E isso bastava para os papeis continuarem a ser impressos.
Com mais ou menos erros, com pouco ou nenhum brilho. Adereços secundários, no rescaldo contabilístico imediato.
No dia a seguir, Cunha esfregava as mãos de contente; acabara de receber um telefonema do Jonas. Aquela sanguessuga arranjara emprego na tipografia mais abaixo na rua.
Atirando-o a ele Cunha e Cunha, para o quadro de honra dos gestores modernos.
Hoje acertam-se as contas, quem vier depois que recupere o talento. Ou apague a luz.
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