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MUDANÇAS CLIMATÉRICAS: CIÊNCIA, POLÍTICA E LIBERALISMO

MensagemEnviado: 18/11/2005 10:06
por Jameson
MUDANÇAS CLIMATÉRICAS: CIÊNCIA, POLÍTICA E LIBERALISMO

João Miranda

Quando o furacão Katrina atingiu Nova Orleães, o ministro do Ambiente da Alemanha, Jürgen Trittin, responsabilizou publicamente o presidente dos Estado Unidos George Bush. De acordo com o ministro alemão, George Bush, ao não assinar o Protocolo de Quioto, contribuiu para o aumento da frequência de eventos climáticos extremos como o Katrina. Variantes desta ideia foram utilizadas para atacar politicamente os Estados Unidos e “demonstrar” a necessidade do Protocolo de Quioto.



Duas semanas após o Katrina, os jornais deram conta de um estudo, publicado na revista Science[1], que provaria a relação entre as emissões de gases de estufa e o aumento da intensidade dos furacões. A comunicação social não deixou de relacionar o estudo com o Katrina, e os defensores do Protocolo de Quioto apresentaram-no como prova da relação entre as emissões de gases de estufa e o aparecimento de grandes furacões. No entanto, o estudo não demonstrava uma relação de causa/efeito entre as emissões de gases de estufa e a intensidade de furacões. O estudo mostrava que, de acordo com dados de satélite, a intensidade dos furacões aumentou nos últimos trinta anos, o que não permite por si só estabelecer uma relação de causa/efeito. A comunicação social omitiu algumas informações relevantes para a compreensão do fenómeno. Os dados de satélite analisados no estudo da Science limitavam-se a um período demasiado curto para que se pudessem tirar conclusões definitivas. Existe na literatura científica outros dados, relativos a um período muito superior a trinta anos, que mostram que a intensidade dos furacões varia significativamente ao longo do tempo, não existindo uma relação óbvia com as emissões de gases de estufa. A tendência observada nos últimos trinta anos pode dever-se a variabilidade natural do clima. Na verdade, sabe-se que a actividade dos furacões nos anos 50 e 60 do século XX atingiu valores semelhantes aos actuais[2]. Uma possível relação de causa/efeito entre as emissões de gases de estufa e furacões é, neste momento, um assunto controverso entre a comunidade científica. A responsabilização de George Bush pela ocorrência de furacões carece por isso de fundamentação.



Este caso revelou mais uma vez que o debate político sobre as mudanças climáticas é extremamente pobre, em parte porque até as questões exclusivamente científicas estão politizadas e em parte por responsabilidade da comunicação social. As notícias sobre mudanças climáticas têm, na maior parte das vezes, um carácter alarmista. Todos os fenómenos climáticos, mesmo aqueles que há uns anos eram considerados parte dos ciclos naturais, são de alguma forma relacionados com as emissões de gases de estufa. Os temas preferidos são os furacões de grande intensidade, a subida catastrófica do nível do mar, o degelo polar, os incêndios florestais, as grandes secas e as grandes cheias. Normalmente, os aspectos mais especulativos ou extremos dos estudos científicos são os que merecem mais atenção. Os casos limite, as hipóteses e os cenários recebem mais destaque e são tratados com a mesma credibilidade e o mesmo grau de certeza que os resultados científicos bem solidificados.



O debate sobre as mudanças climáticas é importante porque elas são habitualmente utilizadas para justificar políticas restritivas da liberdade económica. A importância de uma tradição de liberdade económica pode não ser totalmente óbvia. No entanto, o sucesso da sociedade ocidental depende do progresso material gerado por essa liberdade. Todos os bens materiais da sociedade ocidental, que permitem manter os níveis de saúde, de educação, de conforto e de bem-estar geral, só são possíveis graças ao uso livre de energia fóssil relativamente barata. A limitação do consumo de combustíveis fósseis tem por isso que ser bem justificada.



Muitos dos grupos políticos ligados às causas ecológicas são também aqueles que se opõem à sociedade liberal de tipo ocidental e que têm na sua agenda modelos políticos antiliberais. As restrições à liberdade económica e o estabelecimento de uma sociedade controlada centralmente fazem há muito parte da agenda de grupos com uma visão colectivista da sociedade. Por este motivo, a questão das alterações climáticas deve ser sujeita a um escrutínio rigoroso.

O aquecimento global é um problema extremamente complexo, porque envolve ao mesmo tempo questões científicas e políticas. A mistura entre ciência e política origina dois tipos de tentações. Por um lado, os cientistas poderão sentir-se tentados a empolar determinados resultados científicos com o objectivo de condicionar as decisões políticas a favor da sua própria visão do mundo. Por outro, os políticos poderão usar a reputação dos cientistas para se desresponsabilizarem de opções puramente políticas. Torna-se por isso necessário separar claramente as questões puramente científicas das questões políticas.


Do ponto de vista científico, pretende-se saber se está a ocorrer algum tipo de aquecimento global e se este, a existir, se deve às emissões de gases de estufa de origem humana.



O efeito de estufa é um fenómeno real e incontestado. Alguns gases presentes na atmosfera, como o dióxido de carbono, o metano e o vapor de água, absorvem radiação que de outra forma se perderia no espaço. Isto significa que sem efeito de estufa a temperatura da Terra seria muito mais baixa.



Sabe-se que a temperatura média da Terra aumentou cerca de 0.6 ± 0.2 º C nos últimos cem anos[3]. Sabe-se ainda que a concentração de gases de estufa na atmosfera tem vindo a aumentar[4]. Desde 1750, a concentração de dióxido de carbono aumentou cerca de 31% e a concentração de metano aumentou cerca de 149%.



O aumento da concentração de gases de estufa na atmosfera tem origem na actividade humana. O dióxido de carbono existente na atmosfera tem origem na queima de gases de estufa e na desflorestação e o metano tem origem na produção de combustíveis fósseis, na agricultura e na actividade pecuária.



Grosso modo, o aumento da concentração de gases de estufa coincidiu com o aumento da temperatura média global, o que levou a comunidade científica a colocar a hipótese de existir uma relação de causa/efeito entre os dois fenómenos.



No entanto, o problema não é assim tão simples. Vários factores contribuem para que a existência de uma correlação entre os dois fenómenos não implique necessariamente uma relação de causa/efeito.



O clima da Terra é um sistema complexo que tem uma variabilidade natural elevada. Os registos históricos mostram que nos últimos 1000 anos ocorreu um período anormalmente quente, conhecido por Óptimo Climático Medieval (do século X ao século XIV) e um período anormalmente frio conhecido por Pequena Idade do Gelo (do século XIV ao século XIX). Dado que, antes do século XIX, não existiam métodos modernos de medição da temperatura, o que realmente aconteceu nestes períodos está sujeito a controvérsia científica. No entanto eles colocam em perspectiva o aquecimento observado no século XX. A variabilidade natural pode ser uma explicação plausível pelo menos para parte do aquecimento observado.



O facto de o clima da Terra ser um sistema complexo tem outra implicação importante. Existem muitos fenómenos interrelacionados e é extremamente difícil determinar qual é a influência de cada um no clima. Por exemplo, se o registro de temperaturas mostrar um aumento da temperatura, esse aumento tanto pode dever-se a uma variação na energia reflectida pela Terra, como ao aumento da radiação solar ou a um aumento da concentração de CO2. A contribuição de CO2 pode ainda estar mascarada por fenómenos que contribuem para a diminuição de temperatura, como a presença de partículas na atmosfera.



O aumento de temperatura observado pode ter causas naturais e não ter nenhuma relação com as emissões de gases de estufa. Quando a evolução da temperatura e a evolução da concentração de gases de estufa ao longo do século XX são analisadas em detalhe, verifica-se que existem três períodos distintos. Um período em que o aumento de temperatura não pode ser explicado pelo aumento da concentração de gases de estufa (1900-1945); um período em que a temperatura se manteve mais ou menos constante apesar do aumento da concentração de gases de estufa (1945-1975); e um período em que a concentração de gases de estufa e a temperatura aumentaram simultaneamente (1975-2000)[5].



A questão científica crucial não é portanto a de se saber se existe aquecimento global (tudo indica que sim) ou se as emissões de gases de estufa podem causar aquecimento global (é certo que podem), mas a de se saber que parte do aquecimento global é que pode ser atribuído aos gases de estufa. Ora, esta questão é extremamente difícil de resolver porque os factores que influenciam o clima têm que ser isolados uns dos outros.



Na análise deste problema, o conceito de efeito desprezável é muito importante. Um determinado factor pode de facto influenciar o clima. Pode até existir um mecanismo plausível que implique que um factor tenha necessariamente que influenciar o clima. Mas esse efeito, do ponto de vista quantitativo, pode ser desprezável quando comparado com outros mais importantes. Torna-se portanto necessário distinguir os factores verdadeiramente importantes daqueles que são desprezáveis.



Para distinguir os factores desprezáveis dos verdadeiramente importantes, os climatologistas procuram reproduzir a temperatura observada ao longo do século XX utilizando modelos computacionais para representar o clima da Terra. Só que, como o clima é um sistema complexo, caracteriza-se pelo facto de não poder ser modelizado por modelos simples sem perda de precisão. Os limites computacionais existentes e o relativo desconhecimento de muitos fenómenos climáticos impedem a utilização de modelos suficientemente precisos. Alguns fenómenos, como o efeito das partículas, do vapor de água e da formação de nuvens são difíceis de modelizar.



Com o actual estado do conhecimento, a comunidade científica está convencida de que uma parte do aquecimento global observado no século XX se deve às emissões de gases de estufa[6], mas uma parte significativa desse aquecimento global só pode ser explicável por outras causas[7], nomeadamente pelo aumento da radiação solar ao longo da primeira metade do século XX. Subsistem dúvidas sobre o verdadeiro valor da contribuição dos gases de estufa para as variações climáticas, e estas dúvidas devem-se às incertezas em relação à contribuição de cada um dos factores.



Para além da quantificação dos efeitos dos gases de estufa no clima, os climatologistas dedicam-se a prever o aquecimento global futuro. O Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas (IPCC), a organização das Nações Unidas que estuda o clima, divulgou em 2001 as suas previsões para o clima nos próximos cem anos[8]. De acordo com estas previsões, a temperatura média global deverá aumentar entre 1,4º C e 5,8 º C até 2100. Estes dados foram divulgados pela comunicação social sem qualquer referência à sua fiabilidade. A comunicação social procurou dar o maior relevo possível ao limite superior do intervalo da previsão. Um aumento de temperatura de cerca de 5,8 ºC é de facto extremamente dramático, mas esse está longe de ser o valor mais provável.



As previsões do IPCC dependem da intensidade do efeito de estufa, quantificada em estudos anteriores e que, devido às limitações dos modelos climáticos, está sujeita a incerteza. Para além disso, as previsões são feitas a partir da quantidade de gases de estufa que vão ser emitidos no futuro. As emissões futuras de gases de estufa dependem da evolução das sociedades, um tópico que, por envolver a acção humana, é difícil de modelizar. Para contornar este problema, o IPCC utilizou uma gama variada de cenários, representando todas as possíveis evoluções sociais. Desta forma, foi introduzida uma incerteza relativa às emissões futuras de gases de estufa que se soma à introduzida pelos modelos climáticos.



Os cenários do IPCC mais pessimista sobrestimam as emissões de CO2. Estes cenários são altamente improváveis porque ignoram o impacto da inovação tecnológica. A evolução tecnológica futura pode tornar os combustíveis fósseis obsoletos. Uma economia capitalista tenderá a desenvolver processos mais eficazes e baratos de produção de energia. É por isso possível que, mesmo que não exista qualquer pressão política nesse sentido, o mercado reaja ao previsível aumento do preço dos combustíveis fósseis através de inovações tecnológicas que tornem os cortes nas emissões de CO2 desnecessários.



As medidas políticas, para contribuírem para o bem comum, não se podem basear em notícias alarmistas, têm que se basear em dados científicos objectivos. O maior desafio, do ponto de vista do decisor político, está no tratamento da incerteza. Sendo parte da informação disponível incerta, a forma mais racional de lidar com ela é dando importância não apenas ao seu impacto na sociedade, mas também ao seu grau de probabilidade. Se bem que possam ocorrer no futuro mudanças climáticas importantes, não é racional dar mais importância precisamente àquelas previsões que se baseiam em trabalhos científicos ainda a decorrer e que abordam aquilo que são os piores cenários possíveis.



O aquecimento global é um dos primeiros problemas políticos que tem que ser resolvido à escala global. No entanto, não existe uma entidade política com competência e legitimidade para tomar medidas a nível mundial. Por outro lado, o interesse colectivo de todos os países está em conflito com o interesse de cada país. Todos os países têm interesse em que não ocorra aquecimento global. Mas como a redução de emissões tem custos económicos, cada país individualmente considerado tem um incentivo para poluir, desde que os outros não poluam. Sendo assim, todos os países gostariam de ser os únicos a não ter de contribuir para a redução das emissões. Todos estarão secretamente interessados em não o fazer, embora todos se anunciem favoráveis a uma redução de emissões.



A comunidade internacional está a tentar resolver este problema através de um tratado internacional, o Protocolo de Quioto. O objectivo deste tratado é comprometer todos os países com uma agenda única, de modo a que nenhum se sinta tentado a não contribuir para a redução de emissões.



O tratado foi assinado por mais de 150 países. Destes, só os países desenvolvidos são obrigados a reduzir a emissões abaixo das emissões de 1990. Os países em vias de desenvolvimento estão isentos. Não poderia ser de outra forma. Estes países têm emissões muito baixas, e para se desenvolverem terão forçosamente de consumir mais combustíveis fósseis no futuro.



O Protocolo de Quioto é vulnerável à grande diversidade de interesses e de estratégias dos diferentes países, o que já levou os Estados Unidos e a Austrália a abandonar o Protocolo. Esta característica pode agravar-se quando começarem as negociações para Quioto II, o tratado que substituirá o Protocolo de Quioto a partir de 2012. O Protocolo de Quioto em vigor tem efeitos meramente simbólicos. Um estudo realizado por Wigley[9] usando os dados do IPCC, sugere que o Protocolo de Quioto, se aplicado até 2100, impedirá um aquecimento de apenas 0,15º C se o aquecimento esperado for de cerca de 2º C. Este valor é desprezável quer quando comparado com aquecimento esperado, quer quando comparado com a incerteza das previsões do IPCC (2 a 3º C). Isto deve-se ao facto de os países em vias de desenvolvimento que, no futuro, com a respectiva industrialização, serão os grandes emissores de gases de estufa, não estarem para já sujeitos a qualquer limite de emissões. Para que o acordo tenha algum efeito, os países desenvolvidos terão de reduzir ainda mais as emissões e os países como a Índia, a China e o Brasil, os grandes emissores do futuro, terão de se sujeitar a restrições significativas.



A introdução de medidas mais restritivas, necessárias para combater o aquecimento global previsto pelo IPCC, é politicamente insustentável. Nos países em desenvolvimento, essas medidas iriam atrasar ainda mais o desenvolvimento, do qual milhões de pessoas precisam para sair da miséria. Nas democracias desenvolvidas, essas medidas teriam um efeito significativo no crescimento económico e no desemprego[10].



O Protocolo de Quioto é uma solução ineficaz, pouco flexível, politicamente problemática e excessivamente cara. Felizmente, a imposição de medidas restritivas não é a única opção política. O problema pode ser resolvido em liberdade e sem grandes dramatismos por duas vias complementares. Por um lado, um mundo mais próspero poderá ter os meios necessários para mitigar de forma mais eficaz os efeitos mais nefastos do aquecimento global. Por outro lado, à medida que o petróleo se torna mais caro, os empreendedores, motivados exclusivamente pelo lucro, tenderão a investir em energias alternativas mais limpas e/ou em métodos de produção de energia mais eficientes, evitando dessa forma grande parte das emissões previstas pelo IPCC. Paradoxalmente, medidas restritivas como as que constam no Protocolo de Quioto, para além de terem impacto meramente simbólico no aquecimento global, ao retardarem o crescimento económico, poderão tornar as sociedades mais vulneráveis e menos adaptáveis às mudanças climáticas.



Investigador da Universidade do Minho, membro do blog Blasfémias





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[1] Webster, P.J., G. J. Holland, J. A. Curry, and H. – R. Chang, Changes in Tropical Cyclone Number, Duration, and Intensity in a Warming Environment, Science, 309 (5742), 1844-1846, (2005).

[2] Kevin Trenberth, Uncertainty in Hurricanes and Global Warming, Science, Vol. 308, Issue 5729, 1753-1754, (2005).

[3] IPCC, The Third Assessment Report of Working Group I of the Intergovernmental Panel on Climate Change: summary for policymakers, http://www.ipcc.ch/pub/spm22-01.pdf , (2001), p. 2.

[4] Id., ibidem, p. 7.

[5] Id., ibidem, p. 11.

[6] Id., ibidem.

[7] Id., ibidem.

[8] Id., ibidem, p. 12.

[9] Wigley, T.M.L., Geophys. Res. Lett., 25, 2285-2288, (1998).

[10] O impacto na economia de restrições às emissões de gases de estufa é difícil de prever porque é necessário antecipar a forma como os agentes económicos poderão reagir a essas restrições. Os estudos existentes sugerem que o custo do protocolo nas economias dos países signatários será, ao longo de vários anos, da ordem dos 0,5% a 1% do PIB de cada país. O impacto de um tratado ainda mais restritivo será ainda maior.