Colunistas > 2005-09-28 14:00
Lições da América
Domingos Amaral é director da revista Maxmen e assina esta coluna semanalmente à quarta-feira
Na macro e na microeconomia, a América é mais flexível, logo adapta-se melhor, e cresce enquanto a Europa estagna.
De cada vez que há uma crise na Europa – Iraque, referendos francês e holandês, ou o actual imbróglio alemão – as cassandras são lapidares: o “modelo europeu” está a dar últimas, e o seu fim será trágico e tenebroso. As cassandras, obviamente, estão no seu papel, mas a sua lengalenga desmoralizada só convence quem não percebe nada de economia. Estava escrito nas estrelas que o euro iria dar nisto, e só não viu quem não quis ver. Em troca de uma moeda forte, e de uma utopia de prosperidade mil vezes repetida, os governos europeus abriram mão das taxas de juro e de câmbio, dos deficits, da emissão de moeda e de dívida pública, e assinaram um Pacto de Estabilidade espartano, vigiado por um Banco Central Europeu severo e distante.
Na época, foram contudo convenientemente esquecidos dois pequenos mas fundamentais detalhes. Primeiro, os governos europeus perdiam os poderes mas mantinham as responsabilidades perante os seus povos, continuando a submeter-se a votos com regularidade. Segundo, faltava uma condição essencial para a teoria da moeda única funcionar: a mobilidade das pessoas. Bens e capitais circulavam, mas por causa da língua, da história, do Direito, dos regimes de segurança social, dos impostos e das leis laborais, a circulação das pessoas na Europa não era, nem é, automática.
Usando o “economês”, se a Europa já era “rígida” na microeconomia, com o euro tornou-se também “rígida” na macroeconomia. Uns anos depois, o resultado é evidente. O euro é credível, sendo como moeda um sucesso, mas politicamente é um tormento, e é um ‘flop’ como motor do crescimento económico. Mal a crise económica bateu, o barco meteu água. Impotentes, metidos no colete de forças da PEC, os governos caiem como tordos. E o discurso oficial aponta como única saída mais do mesmo: mais “reformas” e sacrifícios, menos “modelo europeu” e menos deficit. Sem surpresa, os europeus sentem-se a ser atirados contra uma parede e esperneiam. Sem surpresa, as cassandras prevêem o fim de uma era, os neo-liberais assanham-se quando alguém quer remar contra a maré mas também não sabem como ganhar eleições, e os socialistas, como Schroeder ou Sócrates, adoptam as soluções oficiais traindo as suas bases de apoio de esquerda.
Será este ciclo infernal inevitável? Comparemos com o que se passa por exemplo na América. Curiosamente, o que lá vemos é um banco central, o FED, muito mais interveniente que o BCE, colocando como primeira prioridade o crescimento económico, e só depois a inflação. Curiosamente, o que lá vemos é um Estado Federal sem restrições no deficit, que Bush já esticou até aos 6 por cento! Curiosamente, nenhum dos 52 estados da União tem de respeitar nenhum limite de 3 por cento, ou coisa no género. Junte-se a mobilidade das pessoas – é fácil mudar de emprego do Nevada para a Flórida, ou do Texas para Nova Iorque – e ficamos a perceber porque é que a América cresce mais.
Charles Darwin escreveu que a selecção natural beneficiava não os mais fortes, como erradamente se diz para aí, mas os mais adaptáveis (’fittest’). É esse o problema europeu e a vantagem americana. Na macroeconomia, temos um PEC inflexível e um BCE fundamentalista; na microeconomia, temos demasiada “protecção social” e “laboral”. No topo e na base, a América é mais flexível, logo adapta-se melhor, e cresce enquanto a Europa estagna.
Os europeus deviam pensar nisso e redesenhar os tratados do euro. É possível corrigir erros, e melhorar. O BCE tem de preocupar-se com o crescimento do presente, e não com a hiperinflação do passado. O PEC não pode ser uma teimosa lapa agarrada a uma rocha. E as diferenças reais, país a país, têm de ser consideradas. Por mais necessárias que sejam, e são mesmo, as reformas do “modelo europeu” só funcionarão se as regras do euro forem inteligentes. Com o actual absurdo, debilitam-se os regimes democráticos, trucidam-se governos, e sufocam-se os povos. E o mais estúpido é que nada disto é necessário. A América prova que é possível o crescimento económico sem inflação, com um banco central mais interveniente e um governo com défices. Quando irá a Europa aprender a lição?