Sexta-feira, Setembro 23, 2005
Serei eu a única a não me sentir particularmente chocada com o facto de Fátima Felgueiras ir aguardar julgamento em liberdade? E a achar as declarações de Marques Mendes - ao classificar a decisão da juíza de instrução como uma machadada na Justiça - uma intromissão intolerável do poder político no poder judicial, ainda para mais vinda de quem vem, ou seja, do líder do maior partido da oposição? E a entender que a expressão crime sem castigo, propalada por este senhor e por outras eminências pardas da nossa praça (tais como Vicente Jorge Silva, hoje, no DN), revela uma ignorância jurídica, no mínimo, confrangedora? Sim?
Então, eu explico porque penso assim. Vamos lá escarafunchar um bocadinho na lei (aviso que vou ser chatinha).
O artigo 204º do Código de Processo Penal prevê quais as circunstâncias que, verificando-se em concreto, poderão fundamentar a decisão de aplicar (entre outras medidas) a prisão preventiva a um arguido. Tais circunstâncias são: a existência de fuga ou de perigo de fuga, e os perigos de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
De acordo com o que li e ouvi, a juíza em questão terá fundamentado a revogação da prisão preventiva da autarca com base nos seguintes argumentos: o regresso desta e a sua apresentação às autoridades (o que afastaria o perigo de fuga), a suspensão do seu mandato como presidente da câmara ( assim afastando o perigo de continuação da actividade criminosa) e o facto de o processo estar agora a entrar na fase de julgamento, não existindo por isso perigo de perturbação do inquérito nem perigo para a aquisição de prova (uma vez que a fase de recolha desta já passou).
Em termos estritamente formais, esta decisão faz todo o sentido; dizer que se verifica, em concreto, perigo de fuga, quando a arguida se apresentou voluntariamente ao Tribunal, é uma profunda estupidez. Quanto aos outros perigos, parece-me igualmente lógica e com sentido, a decisão, mas, uma vez que a desconheço, só me resta presumir que a juíza deve ter considerado algum deles, pois aplicou outras medidas de coação que pressupõem a verificação de uma (ou mais) daquelas circunstâncias.
A não aplicação da prisão preventiva faz todo o sentido. Se não, vejamos. Esta medida tem óbvio carácter excepcional e só deve ser aplicada em última instância, uma vez que significa a privação de liberdade de alguém que ainda é, presumivelmente, inocente. E é aqui que a porca torce o rabo e que se revela a grande confusão que vai por essas cabecinhas pensantes fora. A prisão preventiva não é um castigo nem deve funcionar como tal, por muito que um país inteiro esteja com uma sede monstra aos autarcas corruptos e aos pedófilos. É uma medida de coacção da qual se deve lançar mão quando os perigos que referi supra não possam ser acautelados de outro modo, menos gravoso. E ponto final.
Falar em crime sem castigo, por isso, revela uma de duas: ou uma ignorância jurídica atroz (e mais vale não se falar daquilo que não se sabe) ou um populismo fácil e demagógico.
Não cabe à juíza de instrução castigar Fátima Felgueiras pelos crimes de praticou; tal função caberá ao tribunal colectivo, em sede de julgamento (e isto, olhando a pena de uma perspectiva meramente retributiva).
Aliás, nem se percebe: Marques Mendes refere-se à fuga de Felgueiras como o crime sem castigo, ou são os crimes pelos quais esta vem acusada que ele entende não terem castigo? É que - pelo que percebi - a fuga em si não configura crime nenhum: não existe evasão (art.º 352º do C.P.) porque a autarca terá fugido para o Brasil antes de lhe ter sido decretada a prisão preventiva. De qualquer forma, mesmo que se entenda que a fuga em questão configura um qualquer ilícito, nunca aquela medida poderia ser o castigo.
Acontece é que existirão fortes indícios de que uma determinada pessoa terá cometido certos crimes; essa pessoa, como todas as outras que se encontram em idêntica situação, vai ser julgada por um colectivo de juízes que, no momento de elaborar o acordão e decidir da pena a aplicar-lhe, vai ter em conta todos os elementos que constam do processo, designadamente, o comportamento que essa pessoa teve ao longo do mesmo.
Diz o art.º 71º do Código Penal que, "Na determinação da medida da pena, atender-se-á a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele, designadamente (...)" , "(...) a conduta anterior ao facto e posterior a este". Daqui decorre o óbvio: que a tão propalada fuga será certamente ponderada, na decisão final, na medida em que configurou uma tentativa de a arguida se eximir à acção da Justiça. É simples, funcional e nada tem de escandaloso ou de injusto.
Portanto, declarações dramáticas de machadadas, editoriais a pedir sangue e afins, demonstram uma enorme falta de rigor e parecem ter como propósito desestabilizações várias, o que é lamentável.
Segunda questão: todos se mostram muito surpreendidos por a dita senhora (tal como o Isaltino e congéneres) se poder recandidatar e - horror dos horrores! - ir à frente nas sondagens. Mas qual é a novidade?, pergunto eu.
Imaginem que alguém constituído arguido não poderia candidatar-se a um cargo público (dá vontade, não dá? quando vemos a cara de pau e o descaramento do labregame autárquico... eu entendo). Agora, imaginem o quão fácil seria, para um adversário, afastar um outro da jogada: bastaria denunciá-lo ao Ministério Publico, alegando umas suspeitas disto e daquilo e dar a entender da existência de uma provas e de umas testemunhas e coiso e tal. Porque a questão é que o Ministério Publico está obrigado por lei a instaurar um inquérito quando recebe uma denúncia (que não seja completamente estapafúrdia, claro está). Vide o art.º 247º do Código Penal:" O Ministério Público procede ou manda proceder ao registo de todas as denúncias que lhe forem transmitidas". Cá está.
Ora, se existem suspeitas, a dada altura do processo há que ouvir a pessoa sobre a qual aquelas recaem, para saber o que ela tem a dizer sobre o assunto, certo? Só que, o art. 58º do Código de Processo Penal (al. a), obriga à constituição de arguido sempre que "(...)correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal."
E pronto, já está. Que entrem as perseguições (políticas e outras) e as delacções, que a porta está aberta.
Isto não quer dizer, como é evidente, que a lei se mantenha nos moldes em que está e que permita que um autarca foragido à Justiça continue, por exemplo, a auferir o seu salariozinho como se nada fosse, mas afirmar à boca cheia que alguém, só por ter sido constituído arguido, não deveria poder candidatar-se, é simplista e perigoso.
Por fim, uma última questão (juro que isto está quase a acabar): o povo gosta da Fatinha e vai votar nela em peso? Pois é claro que gosta, porque o povo não é estúpido (ao contrário do que muitos afirmam). A indiciada corrupção de Fátima Felgueiras não favorecia a terra, as gentes da terra, o clube da terra? Pois é natural que a terra, alheia às minudências legais, goste dela e retribua.
O problema, aqui, cala bem mais fundo e tem a ver com a aberração que é este poder local, nos moldes em que vem descrito na constituição e na lei: um pasto para promiscuidades várias que favorece a confusão entre benefícios privados e públicos, e um verdadeiro tumor na nossa democracia, enfim. Mas isso é outra questão e este texto já vai longo.
Em resumo, o que eu queria mesmo dizer é que, a provar-se culpado, um arguido deve ser punido de acordo com a sua ilicitude, culpa e circunstâncias adjacentes, mas esta sede de vingança histérica, que leva o vizinho a querer matar o pedófilo da casa ao lado (que foi descoberto por acaso e que o vizinho, durante anos, fingiu não ver), é uma coisa muito nossa, muito portuguesa, que conduz a efeitos colaterais vários, entre os quais, a tendência para complicar aquilo que é simples.
É que, neste caso concreto, não vejo mesmo razão para tanto pai nosso e avé maria, para tanto carmo e trindade caídos. Que tal deixar a Justiça em paz por um bocadinho e deixá-la fazer o seu trabalhinho? É que às tantas já enjoa, sempre o mesmo bode expiatório.
Adenda: uma das questões que vejo colocada com frequência (e que me foi suscitada por mail) é a seguinte: se F.F. já fugiu uma vez, não é de prever que, se as coisas lhe começarem a correr mal no julgamento, possa fugir outra vez? E eu respondo: se isso vier a acontecer, é. Se. Só que, para fundamentar a aplicação de uma medida de coacção, o perigo de fuga que a lei prevê tem de ser actual e concreto. A qualquer altura, em havendo uma alteração dos respectivos pressupostos (de facto ou de direito), qualquer um dos sujeitos processuais pode requerer ao juíz a alteração da medida em vigor. Agora, não podemos, com base numa quase futurologia e em meras conjecturas, privar alguém da sua liberdade. Isso, sim, seria kafkiano, medieval, whatever.
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