Sérgio Figueiredo
Cunhal perdeu. E nós?
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Cruel ironia a da História. Álvaro Cunhal morre um dia depois de Vasco Gonçalves. E ambos resistiram poucas horas após a celebração, em sessão solene, de duas décadas da adesão de Portugal à CEE. Assim, de repente, o país regressou à bifurcação de outros tempos. A bifurcação, em que aquelas duas figuras históricas se separaram do caminho que Portugal seguiu.
Vasco Gonçalves estatizou a economia, decapitou os grupos económicos, marcou o capitalismo português até aos nossos dias. Ainda hoje o responsabilizam. Ainda hoje é lembrado o «trauma» das nacionalizações, para justificar os centros de decisão nacional.
É impossível especular sobre o que teria sido o companheiro Vasco, as nacionalizações, o Verão quente, sem Álvaro Cunhal. Um exercício impossível e serôdio.
Mas já é possível imaginar o que teria acontecido ao país se eles tivessem triunfado. O «companheiro Vasco» e o MFA. O «camarada Álvaro» e o Partido Comunista. Ou, então, o que não teria acontecido.
Não teria havido a opção europeia, porque os comunistas foram contra a adesão, foram contra o mercado único, foram contra a união monetária, contra o euro e continuam contra tudo o que signifique o aprofundamento da nossa integração.
Textos como este podem hoje ser livremente escritos. E, livremente, pode concordar, discordar, insultar, passar a comprar outro jornal. Para que isso fosse assim, Cunhal viveu uma vida inteira. E outros morreram.
Mas felizmente que o projecto de Cunhal e de Vasco Gonçalves morreu muito antes deles. A nação prestou-lhes um tributo à coerência, suspirando de alívio por eles não terem falecido como vencedores da História.
No adeus de Cunhal, há orgulho na democracia que temos. Senão, o que leva Sócrates e Sampaio celebrarem a União Europeia e, dois dias depois, decretar luto nacional pelo líder comunista? E, em simultâneo, ouvir elogios de uma confederação dos agricultores, enquanto comunistas alentejanos o recordavam pela reforma agrária?
Em 48 horas, o país percebeu aquilo que evoluiu e amadureceu em 30 anos. A Europa, que Cunhal, não queria ajudou-nos na prosperidade - e, sim, somos mais prósperos do que há vinte anos. A democracia, pela qual Cunhal lutou, é irreversível e, neste momento, está a prestar-lhe a mais justa das homenagens.
E este regresso ao passado, que fizemos com duas mortes e uma efeméride, tem curiosamente um efeito regenerador. Não tanto porque, olhando para trás, somos capazes imaginar que poderia ter sido pior. Mas, sobretudo, para olhar para a frente com maiores convicções.
Porque a crise da Europa é grave. Porque a nossa situação é mais complicada ainda. Porque estão em causa muitos dos direitos sociais, que a esquerda conquistou, mas são um património de todos. E a convicção que não há alternativa, de facto, a tudo isto: estar Europa, repensar a nossa vida, proteger os mais fracos.
Os seguidores de Cunhal continuam sem perceber isto. Fazem greve. É cruel. Sem qualquer ironia.