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10/1/2005 16:48
por Visitante
A incerteza em linha *
Fernando Venâncio
No «Alfa» para o Porto, o revisor, ar compenetrado mas afável, vem verificar o bilhete. Devolve-lho com um «Muito obrigado», uma cortesia que só fica bem à empresa. No banco ao lado, segue uma senhora. Ao entregar-lhe o bilhete, o revisor diz: «Muito obrigada». Um casal mais à frente receberá do revisor um convicto «Muito obrigados». O viajante ainda pensou armar-lhe uma espera, a instruí-lo, mas hoje prefere imaginar que, todos os dias, anda um senhor revisor, país acima país abaixo, adaptando aos clientes a sua gratidão.
A fórmula portuguesa do agradecimento presta-se a estas derivas. Cedo ou tarde, a originalíssima fixação no sexo haveria de levar algum falante mais atencioso a este extremo de delicadeza: orientar-se pelo sexo do outro. Mas a realidade diária é ainda mais simples. Sempre foi normal um homem dizer «obrigada», e é vulgaríssimo ouvir-se a uma senhora «obrigado». Em suma, ninguém na prática, ao agradecer, pensa no sexo, próprio ou alheio. A forma não-marcada, básica, é «obrigado», com uma variante, «obrigada», utilizada sobretudo por uma mulher. Algo semelhante se passa com «sim senhor» e «sim senhora», indiferentes que são ao real sexo do interlocutor. Diferença, se a há, é de intensidade: o feminino, «sim senhora», «não senhora», denota suplementar convicção. Seria artificioso discernir, nestes factos, quaisquer «problemas».
Os responsáveis de Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, um «website» da Internet, são bastante menos laxistas. Para eles é óbvio, indiscutível: uma senhora deve dizer «obrigada», um cavalheiro «obrigado». Trata-se, explicam, do resíduo de formulações do tipo «Estou-lhe obrigado, ou obrigada, pelo favor». Uma circunstância «histórica» funciona, assim, como directiva para a actuação presente. Uma curiosidade diacrónica acaba transformada em fonte actual de insegurança, quando não de má-consciência. Ciberdúvidas acredita na História, e acredita, desmedidamente, na razão. Guiado por ela, determina o que é «correcto». «A gente vamos» é um erro de concordância, e por isso uma «incorrecção». Eis-nos conversados.
Estranha, esta vocação legalista em ambiente cibernético? Não. As pessoas buscam certezas, e Ciberdúvidas nasceu para lhes estender um apoio. Consultantes ou informadores, uns e outros focam, na língua portuguesa, não o criativo mas o «traiçoeiro». Daí que, ao longo dos meses, os mesmos pedidos de esclarecimento se repitam. Devo escrever «de mais» ou «demais»? Posso dizer «mais pequeno»? É «deve fazer-se» ou «deve-se fazer»? Quando dizer «ter de» e quando «ter que»? Quando escrever «se não» e quando «senão»? É «informo que», ou «informo de que»? São, um por um, pontos de compreensível hesitação, onde todo o esclarecimento é bem-vindo. Mas a ansiedade dos consultantes parece comunicar-se aos informadores, e eles ainda a reforçam. Com esta convicção, esta estreiteza de horizontes: «O que deve imperar é o correcto e não o uso. Se formos apenas pelo uso, qualquer dia não nos entendemos. É certo que é o uso que faz a língua, mas este, o uso, tem de ser devidamente preparado e corrigido» (edição de 27-X-1997). Não há posição mais frustrante de qualquer dinamismo.
As coisas seriam menos graves se a qualidade geral da secção «Perguntas/Respostas» fosse de molde a impressionar-nos. Mas, à parte a informada contribuição de Fernando Venâncio Peixoto da Fonseca e os vivos textos de Teresa Álvares (lê-la, a esta, é já um prazer), à parte isso, as respostas vão, mais vezes do que razoável, do embrulhado ao insípido. No segundo mês de existência do «site», um leitor pedia informação sobre o uso de «ter de» e «ter que». Seria fácil elucidá-lo. Dizia-se-lhe, primeiro, que «Tenho de avisá-lo» e «Tenho que avisá-lo» são na prática sinónimos, e que, segundo, uma frase como «Tenho muito que fazer» não pode ser substituída por «Tenho muito de fazer». Pois bem, múltiplas insistências não conduziram, até hoje, a esse esclarecimento. Meses levou, igualmente, até o «site» dar resposta capaz à questão «informar que/informar de que». Confusas foram largo tempo, também, as respostas sobre «de mais» e «demais». A colocação do pronome átono («Levantou-se», «Não se levantou»), tema também ele recorrente, não foi mais feliz. Existem regras claras, existem desvios estilísticos. Mas que faz o especialista José Neves Henriques? Brinda-nos com variantes de certa frase, e vai-as apreciando segundo, imagine-se, a eufonia. Uma está «mais bem ritmada», outra «pronuncia-se com mais facilidade», esta tem uma «sonância menos agradável», aquela é «mais rítmica», outra contém um «seguimento desagradável». É uma conversa «au coin du feu» internético.
Isto tudo não obstou a que o «site» (ou «página», ou «sítio», que também é bonito) mantivesse, desde a sua criação em Janeiro de 1997, uma inequívoca popularidade, contando todos os meses cerca de seis mil «visitas». Ciberdúvidas da Língua Portuguesa apresenta-se como «programa educacional e cultural», inspirado numa «filosofia de jornal», patenteada em secções de divulgação, de notícias, opinião, debate, polémica, correio de leitores. A «página» não é só o mais recente, é também o mais manejável dos «consultórios linguísticos». Vasco Botelho do Amaral, nos anos 40, ou Edite Estrela, nos anos 80, intervinham no jornal e no livro. Nos primórdios da RTP, Raul Machado ensinava o país pelo ecrã. Hoje, Ciberdúvidas está «em linha» a qualquer hora do dia e da noite, com as «últimas» em matéria de «dúvidas» e as respostas da redacção. A isto se soma todo o género de secções: a de «Controvérsias», um «Pelourinho» («Maria Elisa, diga êispu»), um «Correio» de leitores, uma (valiosíssima) «Antologia» de escritores de língua portuguesa, um «Glossário» de erros frequentes.
Simplesmente, a sombra dos predecessores é mais do que uma figura de estilo. Embora sofisticadas, para se lerem de «rato» na mão, as «Perguntas/Respostas» mais propriamente linguísticas vão-se revelando um «déjà vu», numa medida algo assustadora. Já Botelho do Amaral, já Edite Estrela, haviam explicado, uma e duas vezes, o que se passa com «a gente vamos», com «supônhamos», com «à última da hora», com o «obrigado» e o «obrigadinho». Estes e bastantes outros pontos ficaram aí tão esclarecedoramente expostos, que dá pena vê-los hoje tratados com mão menos segura. E que observamos? O rol das «ciberdúvidas» vai, inexoravelmente, coincidindo com as Dúvidas do Falar Português, de Edite Estrela, onde se trataram também já os temas «rendível/rentável», «acordos», «houveram», «desde Londres», «interviu», «pronúncia de 'texto'», «eu parece-me», «despoletar», ou o celebrizado «bilião». Poderia, assim, pensar-se que os responsáveis levavam a sério o que um correspondente, Carlos Sousa Ferreira, escrevia na edição de 18-IV-1997: «O Ciberdúvidas é útil como registo das dúvidas dos falantes, embora muitas delas sejam já velhas de pelo menos 50 anos e as respostas continuem a ser as mesmas». Mas não. Com alguma leviandade, João Carreira Bom (da JCB - Consultores de Comunicação, responsável pela «página») prontamente comentava: «Segundo CSF, de meio em meio século muda a totalidade dos elementos que constituem a língua e, no meio século seguinte, já não há vestígios do meio século anterior». Evidentemente, não foi isso o que o correspondente afirmou. (Pouco «chique», a secção «Perguntas», desse mesmo dia, atribuía a uma «má-fé» os reparos.) Já é suficientemente grave este recurso ao vezo chalaceiro, o mesmo que há quatro ou cinco décadas fazia a delícia dos leitores de João de Araújo Correia, magnífico estilista, mas algo desnorteado na «defesa» do idioma. Mais grave é que os responsáveis ignorem um sério aviso a todo o empreendimento que dirigem.
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa tem ainda bastante que aprender. Antes de mais, precisa de rever o «clima», a «cultura» interna. Tem de deixar-se de atitudes defensivas (género: «não foi isso o que se nos perguntou») e, pior, achincalhantes para o consultante. Se um colaborador se exprime, um dia, com infelicidade (como na sugestão de «estalidar» por «clicar»), deve, ao ser-lho apontado, concedê-lo com desportivismo. Depois, a importante secção «Controvérsias», que, com alguma demasia, dá abrigo a esse mau-perder, precisa de ser repensada. Ciberdúvidas pode, com ganho para todos, reger-se pela tolerância, pela razoabilidade, pela percepção dos processos, das transições, dos espaços de manobra. Longe de comprazer-se na incerteza linguística do utente, deverá estimular nele um falante inventivo e ousado.
8/4/1998
* artigo publicado no semanário português "Expresso" (Cartaz, Actual) no dia 4 de Abril de 1998.
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1 - Obrigado, obrigada *
Fernando Venâncio Peixoto da Fonseca
O artigo publicado no jornal "Expresso", no dia 4 do corrente, sob o título "A incerteza em linha" (Cartaz, Actual), em que sou mencionado, sugere-me algumas considerações. A primeira, e seguindo a ordem do texto, é acerca do uso de obrigado, -a, -os, -as; o seu autor escreve: «Sempre foi normal um homem dizer "obrigada", e é vulgaríssimo ouvir-se a uma senhora "obrigado".» Contesto: não é "normal" um homem dizer "obrigada", é apenas erro disparatado, atribuível talvez a desleixo do uso da sua língua, que é a de todos nós. Já uma senhora dizer "obrigado" é, actualmente, correcto, pois o vocábulo tornou-se invariável (em advérbio, ou melhor, interjeição), embora continue a estar certo uma mulher dizer, facultativamente, "obrigada", porque é ela que fica "obrigada" (particípio passado / adjectivo verbal) a quem deve algum favor, e esta noção ainda não se encontra completamente esquecida. Se o leitor e a sua mulher estiverem a agradecer seja a quem for (uma ou mais pessoas, homens, mulheres, ou homens e mulheres), pode dizer "muito obrigado" (uso adverbial) ou "muito obrigados" (particípio passado no plural masculino), que o engloba e à sua parceira. Concordo com tudo o que diz sobre "sim, senhor" (ou senhora); se estivermos muito admirados, por exemplo, é-nos lícito exclamar "sim, senhora!", sem pensar em qualquer espécie de interlocutor, que pode até nem existir. Fenómenos interessantes da língua portuguesa!
Não vejo, pois, que Ciberdúvidas não esteja na razão ao defender o exposto acima acerca do emprego de obrigado, etc. Por outro lado, na realidade, nem sempre há certezas, mesmo sem se tratar de etimologias, caso mais sujeito a dúvidas. O uso e o correcto andam lado a lado, por vezes contrariando-se, até que um se impõe, geralmente o uso, mas sempre ao cabo de largos anos. Até lá compete a quem sabe (ou julga saber!) algo deste "escabroso" tema criticar o uso, quando de qualquer modo violenta o que na altura se acha correcto, graças a demorado uso anterior.
Agora, e sempre acompanhando "pari passu" o texto do artigo, cumpre-nos agradecer as amáveis palavras que nos são dirigidas, bem como à minha Colega Dr.ª Teresa Álvares: Bem haja!
É evidente que nem todas as nossas respostas são as mais felizes, e, por outro lado, a chamada norma também vai variando, como atrás fiz ver. Daí, até censurar o meu distinto Colega Dr. José Neves Henriques pela sua sensibilidade eufónica, vai um bocado longe de mais, apesar de eu próprio ser de opinião que tudo o que meta ritmo e eufonia é bastante subjectivo e mais próprio de escritores e poetas (artistas) que de linguistas mais ou menos caturras (gramaticões!). José Neves Henriques é um dos mais notáveis professores da especialidade, com sobejas provas dadas em dezenas de anos de ensino e consultório de português nas páginas de várias publicações, em que assinalo os boletins da Sociedade da Língua Portuguesa (de que é Sócio de Honra) e o "Diário de Notícias". E é curioso que, apesar de algumas naturais divergências, estamos quase sempre de acordo, facto que não passou despercebido a um ilustre engenheiro, que há pouco se enfronhou nas nebulosas do português e, segundo me disse, passou a considerar muito mais científicos estes estudos por verificar em nós tão raras discordâncias, o que mostra que há pouco de subjectivo em tais lides.
Continuando estes comentários, "Ciberdúvidas" não tem culpa de que haja pessoas que nunca leram ou ouviram os autores que Fernando Venâncio cita, ou porque ainda não tinham nascido, ou por falta de leitura, ou por ao tempo ainda não possuírem televisão (ou rádio, lá mais para trás). Por isso, temos de atender a essas dúvidas, "refilando" apenas quando os assuntos já foram tratados pela equipa de "Ciberdúvidas". Nesta ninguém achincalha ninguém, mas é de realçar que muitas dúvidas poderiam não existir se os consulentes usassem mais um modesto dicionário ou uma gramaticazinha, em vez de não o fazerem, sabe-se lá porquê.
* Cf. contraponto deste texto A incerteza em linha
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2 - Incerteza ou laxismo? *
Teresa Álvares
Publicou o «Expresso» na secção Actual do caderno Cartaz, em 4 de Abril, o artigo «A incerteza em linha», de Fernando Venâncio, em que o vosso colaborador, ao criticar o sítio da Internet «Ciberdúvidas da Língua Portuguesa», teve a amabilidade de me fazer uma referência. Referência muito simpática. Mas feita no âmbito de um conjunto de opiniões que me parecem contraditórias e me levam a pedir a publicação do seguinte:
A «fala do povo», há uns anos ignorada ou tratada com desdém pelos que se consideravam ilustrados, é hoje objecto de estudo dos linguistas e de observação benevolente por quem lê muito, escreve ainda mais e paira acima do erro ortográfico ou sintáctico...Também sofro desse «mal»: não me atreveria a corrigir o «obrigada» do revisor do Alfa, nem dou lições à minha mulher a dias quando ela diz «fáçamos», «vestoria» ou «eu lavo-le já essa roupa». Não entendi ainda porque o não faço: por me deleitar o pitoresco («os pobrezinhos tão engraçados...»)? Por um sentimento de impotência (serão tendências da língua, possivelmente «a regra» dentro de dezenas de anos)? Por pensar que ela não me entenderia?
As coisas começam a não ter tanta graça quando são os professores dos nossos parentes e descendentes a dizer «há-des trazer o teste assinado pelo teu pai» ou a escrever «o aluno, demonstra ter conhecimentos sofecientes» ( garanto que estas não foram inventadas). Então, o «laxismo» perante a «incorrecção», a observação benevolente, a condenação do espartilho da «norma» deixam de ter justificação, e aqui-d'el-rei que os «novos analfabetos» andam a ensinar erros de palmatória aos nossos filhos.
Ambas as atitudes são compreensíveis, assim como são evidentes as forças contrárias - conservadorismo e modernidade - que (des)equilibram a evolução da Língua. Ao afirmar que o que deve imperar não é o uso, Ciberdúvidas opta por um dos lados, não há dúvida. Por que lado opta o nosso crítico é que eu não entendi bem: diz que há «regras claras» e «desvios estilísticos», mas que o Ciberdúvidas demonstra «estreiteza de horizontes» e frustra «qualquer dinamismo» por seguir a norma.
Em que ficamos? Aplica-se ou não, para efeitos didácticos, uma norma? Deve o Ciberdúvidas aceitar a «criatividade» de «fáçamos uma língua moderna», de «tu respondestes muito mal a este consulente»? E se o revisor do Alfa nos fizer uma pergunta sobre «obrigado(a)», respondemos-lhe que continue saborosamente a dizer «obrigada» a uma senhora e «obrigados» a um casal?
Ciberdúvidas destina-se aos que querem ou precisam de tirar dúvidas, aos que querem ou precisam de saber e não têm em casa dicionário ou gramática que os esclareçam. Destina-se aos que, sabendo, querem polemizar, e gostam de o fazer abrindo novas perspectivas sobre velhas questões. Há quem nos leia com fastio e nos arrume no rol das velharias, porque respondemos às mesmas perguntas de há cinquenta anos com as mesmas respostas. Que acha o nosso crítico que façamos? Não respondemos às perguntas dos correspondentes e remetemo-los para a dr.ª Edite Estrela ou para Vasco Botelho do Amaral? (Porque não para Cândido de Figueiredo, que é muito mais antigo e já respondia às mesmas coisas?) Pois se eles já disseram tudo e são mais seguros do que nós!?
É claro que Ciberdúvidas tem ainda muito que aprender. É claro que tem pecado por alguns dos defeitos que lhe aponta. Muito obrigada pelos avisos, decerto inspirados pela vontade de nos ajudar. No entanto, há no seu artigo afirmações inaceitáveis, porque injustas, particularmente as respeitantes a José Neves Henriques. Neves Henriques não tem no seu currículo programas de televisão onde pudesse ter demonstrado sábia telegenia, mas tem atrás de si meio século de docência e estudo, de colaboração com a imprensa, de que poucos poderão vangloriar-se. E as suas respostas no Ciberdúvidas são as preferidas pela maior parte dos consulentes por algum motivo. Finalmente, acha mesmo que a eufonia, a cadência, o ritmo de uma frase não podem ser critérios para lhe avaliar a correcção?
29/4/1998
* Cf. contraponto deste texto A incerteza em linha