"Fraudes I: Colapso Conspícuo "
Por Joao Dinis de Sousa , 18/11/2004
"Chamo a atenção para o facto de uma grande parte das pequenas empresas hoje cotadas na Bolsa portuguesa serem uma espécie de “refugo” ou lixo económico-financeiro do conjunto das que estiveram cotadas em finais dos anos 80 e anos 90. Detesto usar metáforas sem deixar bem claro o significado que lhes dou, por isso, vou definir o que entendo por refugo aqui. No início dos anos 90 (1990-92) tínhamos umas 200 empresas cotadas na nossa Bolsa, hoje estão 49 a transaccionar regularmente no contínuo. As saídas foram acontecendo fundamentalmente por duas vias, as falências, e as OPAs. Este processo de retirada das empresas da Bolsa teve repercussões económicas profundas para as centenas de milhar de pessoas que eram accionistas das mesmas, a maioria das vezes lesando-os gravemente, e de forma fraudulenta (no sentido de fraude económica, não necessariamente no sentido legal).
Os pequenos accionistas foram colectivamente lesados e enganados de muitas maneiras. A análise destas complexas teias de fraude mereceria talvez um livro ou tese completa, mas nesta série de artigos descreverei três formas modelares, a que chamarei Colapso Conspícuo, Bom Demais Para Ti e Morte Lenta. Para já, neste artigo, vou só focar o primeiro caso.
No Colapso Conspícuo (que sucedeu a muitas dezenas das empresas citadas) há uma situação económica difícil da empresa cotada que a empurra para prejuízos avultados e falência em poucos anos. No entanto, a empresa tem negócios (quer como cliente quer como fornecedora) com outras empresas do mesmo grupo (detidas todas pelo mesmo empresário ou família). Por exemplo, empresas satélites prestam à empresa principal serviços de consultadoria, de engenharia, de vendas, de assistência técnica, de aluguer de máquinas, de fornecimento de mão de obra, etc. O empresário faz com que esses serviços comecem a ser pagos a preços mais altos do que o normal, reforçando o prejuízo da empresa central e o lucro das satélites. A empresa principal é bem visível, conspícua, conhecida, logo o seu colapso é conspícuo, convence os media, os analistas e os investidores, justifica o não pagamento de dividendos durante anos, o não pagamento de impostos (devido ao prejuízo) e a descidas das acções para zero. Nos casos mais fantásticos, esse Colapso Conspícuo ajuda ainda a obter do Estado mais subsídios do que os habituais, alegando que são necessários para salvar a empresa (apesar de todos os envolvidos saberem que não haverá salvação real) que são embolsados pelo empresário de diversas formas. As perdas que o empresário sofre na falência da empresa principal são compensadas pelos ganhos nas empresas satélites (nas quais ele tem, muitas vezes, participação de 100%, ao contrário do que tem na empresa principal), e com remunerações extra-capital muito importantes como ordenados, carros de luxo e viagens para toda a família mesmo durante a crise.
É verdade que, nestes colapsos, muitas vezes o empresário sai mesmo a perder, a falência é mesmo ditada pela concorrência e forças de mercado, e ele, no conjunto, perde. Porém, com estes artifícios consegue reduzir imenso as suas perdas, aumentando as dos pequenos accionistas. Por exemplo, imaginemos uma empresa que tinha uma capitalização bolsista de 10 milhões de contos antes da crise e na qual o empresário detinha 50%. A descida das acções para zero faz o empresário perder 5 milhões e os pequenos accionistas outro tanto, cada um na proporção das suas participações, como é devido. Mas, durante o Colapso Conspícuo, a empresa acelerou os seus pagamentos às empresas satélites detidas pelo empresário principal. Estas tiveram assim mais receitas, parte das quais foram para o empresário e família como remunerações (ordenados, carros, etc) e parte ficou retida nessas empresas satélites, aumentando os seus capitais próprios. A falência da empresa principal poderá arrastar para o fundo algumas das satélites dela dependentes, mas não todas; algumas das empresas prestadoras de serviços têm outras empresas clientes além da que se afundou, e sobrevivem, com capitais próprios reforçados. Assim, o empresário poderá ter ganhos nestas empresas (e nas remunerações pessoais) que compensem parcialmente os 5 milhões perdidos com a queda das acções da empresa principal, reduzindo a perda para 1 ou 2 milhões, ou anulando a perda, ou até de forma que sai a ganhar no conjunto.
Em todo este processo, as remunerações internas têm um papel muito importante. Às vezes pensa-se que elas são relativamente insignificantes, mas isto não é o caso para as pequenas empresas. Imagine que o empresário ganha 2000 contos por mês, tem ao todo 10 pessoas da família (e amigos próximos) em cargos importantes quer na empresa principal quer nas satélites, cada uma a auferir remunerações médias de 1000 contos por mês e mais 20 em cargos mais baixos, a ganharem 500 contos por mês. Com 14 meses de ordenados, isto dá 308 mil contos por ano para todos eles. Ora, como considerámos acima que a capitalização na fase pré-crise era 10 milhões de contos, e considerando um PER de 15, é plausível que o lucro anual da empresa (PER = capitalização / lucro) andasse à volta de 660 mil contos. Como se vê, as remunerações de um conjunto limitado de quadros bem pagos podem não ser pequenas comparadas com os lucros e dividendos. Admitindo que, dos 660 mil contos de lucro anual, 1/3 ia para dividendos, o montante destes seria 220 mil contos. Estes sim, são rigorosamente na proporção das acções de cada accionista, logo o empresário principal recebia normalmente (pré-crise) 110 mil contos de dividendos e os pequenos accionistas outros 110 mil. A família do empresário, no seu conjunto, recebia 110 + 308 = 418 mil contos de rendimento total anual (admitindo que não ganhavam por outras vias além de ordenados e dividendos, o que não é certo). Logo, para a família instalada, ¾ dos rendimentos vinham de remunerações, só ¼ de dividendos; para os pequenos accionistas era tudo dividendos. Logo, uma fase de crise de vários anos, priva os pequenos accionistas de todo o seu rendimento, mas priva a família dominante de apenas ¼ do seu rendimento.
Poderão, além disso acelerar o colapso da empresa principal através do aumento das remunerações por si auferidas, e depois da falência irem investir o dinheiro que nunca deixaram de ter em outras empresas que detenham, nas empresas satélites que sobreviveram, ou até, como se viu em muitos casos, no arranque de uma empresa principal nova, com a mesmíssima actividade, as mesmas instalações, os mesmos trabalhadores, etc, mas nova juridicamente, na qual os pequenos accionistas já não participam.
Como é óbvio, estas situações estão no limiar entre a legalidade e a ilegalidade, às vezes com ilegalidades gritantes, nunca punidas, outras vezes, legais mas gravemente ilegítimas e danosas para os pequenos accionistas."
(in
www.finbolsa.com)