31 anos depois
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31 anos depois
31 anos depois
paulo cunha e Silva
Imaginemos uma pessoa com 31 anos. Parece-nos crescida. É adulta. Absolutamente adulta. Totalmente imputável. Responsável e responsabilizável. Se pôde crescer bem, não lhe desculpamos certos atavismos. Exigimos-lhe um código de conduta. Uma ética. 31 anos parece-nos tempo suficiente para corrigir os erros. Sobretudo quando se nasceu de novo. Voltar a nascer deveria querer dizer isso. Nova vida nova oportunidade. E uma nova oportunidade jamais pode- ria ser uma oportunidade perdida. Quantas pessoas gostariam de poder voltar a nascer? De poder voltar a não fazer tudo aquilo que fizeram mal. Ou, ao contrário, de voltar a cair nos mesmos erros, porque o erro gosta de se replicar.
O erro pode ser essa atracção, essa compulsão, por uma passagem mal passada. O criminoso volta sempre ao lugar do crime. Porque o espaço é um forte atractor. Não sei se é por isso que nos dizem que não devemos voltar ao lugar onde em tempos fomos felizes. Essa felicidade só é memória. E a memória tem a capacidade de preservar o tempo da erosão do tempo.
Se voltarmos, de facto, a memória é substituída pela brutalidade da evidência. Uma efeméride tem esse efeito duplo. Por um lado, a comemoração é uma espécie de alimento da memória; ao comemorarmos, pretendemos não esquecer. Por outro lado, ao comemorarmos, confrontamos o tempo actual com o que imaginávamos quando o tempo ainda não tinha tido tempo. E aí a consciência da erosão pode ser cruel.
É preciso dar tempo ao tempo. Mas com muito tempo o tempo ensarilha-se. Revolve-se sobre si. Dobra-se. E o tempo não volta para trás. Simone de Oliveira pedia-o, mas Ilya Prigogine e a sua termodinâmica do não equilíbrio explicaram-nos que não podíamos atender ao seu pedido. O tempo só volta para a frente. Ou seja, só se revolta. A convicção de que a história é cíclica é uma tremenda falácia. Quando muito, pode ser espiral. Podemos voltar ao um ponto próximo de um ponto por onde já passámos, mas nunca passamos pelo mesmo ponto. Ninguém pode dizer, em rigor, "já passei por isto". Nunca ninguém passa pelo que já passou. Nunca ninguém passou pelo que estou a passar. Mesmo quando dizemos "estou a passar-me", queremos dizer que vamos mudar de estado, que vamos experimentar uma transição de fase. Passarmos de líquido a gasoso, ou de sólido a líquido. Ou, ainda, de sólido a gasoso directamente, ou de gasoso a sólido, também directamente. E, depois, se tentamos voltar ao ponto de partida, só conseguimos voltar a um ponto próximo do ponto de partida.
É por isso que, embora uma efeméride seja uma espécie de corrida contra o tempo, ela é também, muitas vezes, a oportunidade de fazer balanços e de pôr em confronto tempos diferentes. Justamente porque, se o tempo não volta para trás, podemos tentar perceber o que foi feito, o que não feito e o que poderia ter sido feito.
O personagem que faz depois de amanhã 31 anos é, como já notaram, o 25 de Abril. E apesar de o País estar muito diferente formalmente daquilo que era há 31 anos, está muito semelhante na manutenção do "mal português". Na superfície, o País está mais desenvolvido, mais rico, mais leve, mais tolerante, mais sofisticado, mais equipado, mais letrado, mais cimentado, mais culto, mais cool, mais democrático, mais solto, mais livre. Mas se levantarmos um pouco a pele da realidade ainda vemos um país pequenino, mesquinho, preconceituoso, reverencial, medroso. Um país em que um polícia ainda tem qualquer coisa de agente da repressão ou, pelo menos, é olhado como tal. "Sim, senhor agente." E isso quer dizer que, apesar de a seta do tempo só ter um sentido, pode ter várias velocidades e até velocidade negativas. O tempo avança e há países que se atrasam. "Não tenhas pressa, mas também não percas tempo", alguém me disse. "Tenho pressa de partir", retorquiu António Variações, "para outro lugar". E o que é Portugal hoje, a dois dias do 31.º aniversário do seu renascimento? É um país que, sem dúvida, está na moda, várias matérias na imprensa internacional confirmam-no, mas que, e paradoxalmente, continua a ser o mais atrasado da chamada Europa Ocidental para a mesma imprensa e de acordo com todos os indicadores.
Portugal, 31 anos depois, é um país descontínuo já tem o melhor, mas ainda tem o pior. É generoso e mesquinho, sofisticado e provinciano, tolerante e preconceituoso até ao miolo genético. E como se vive por aqui? Com paciência, com muita paciência, e uma doce melancolia. Felicidades, Portugal, a tua sorte também é nossa!
paulo cunha e Silva
Imaginemos uma pessoa com 31 anos. Parece-nos crescida. É adulta. Absolutamente adulta. Totalmente imputável. Responsável e responsabilizável. Se pôde crescer bem, não lhe desculpamos certos atavismos. Exigimos-lhe um código de conduta. Uma ética. 31 anos parece-nos tempo suficiente para corrigir os erros. Sobretudo quando se nasceu de novo. Voltar a nascer deveria querer dizer isso. Nova vida nova oportunidade. E uma nova oportunidade jamais pode- ria ser uma oportunidade perdida. Quantas pessoas gostariam de poder voltar a nascer? De poder voltar a não fazer tudo aquilo que fizeram mal. Ou, ao contrário, de voltar a cair nos mesmos erros, porque o erro gosta de se replicar.
O erro pode ser essa atracção, essa compulsão, por uma passagem mal passada. O criminoso volta sempre ao lugar do crime. Porque o espaço é um forte atractor. Não sei se é por isso que nos dizem que não devemos voltar ao lugar onde em tempos fomos felizes. Essa felicidade só é memória. E a memória tem a capacidade de preservar o tempo da erosão do tempo.
Se voltarmos, de facto, a memória é substituída pela brutalidade da evidência. Uma efeméride tem esse efeito duplo. Por um lado, a comemoração é uma espécie de alimento da memória; ao comemorarmos, pretendemos não esquecer. Por outro lado, ao comemorarmos, confrontamos o tempo actual com o que imaginávamos quando o tempo ainda não tinha tido tempo. E aí a consciência da erosão pode ser cruel.
É preciso dar tempo ao tempo. Mas com muito tempo o tempo ensarilha-se. Revolve-se sobre si. Dobra-se. E o tempo não volta para trás. Simone de Oliveira pedia-o, mas Ilya Prigogine e a sua termodinâmica do não equilíbrio explicaram-nos que não podíamos atender ao seu pedido. O tempo só volta para a frente. Ou seja, só se revolta. A convicção de que a história é cíclica é uma tremenda falácia. Quando muito, pode ser espiral. Podemos voltar ao um ponto próximo de um ponto por onde já passámos, mas nunca passamos pelo mesmo ponto. Ninguém pode dizer, em rigor, "já passei por isto". Nunca ninguém passa pelo que já passou. Nunca ninguém passou pelo que estou a passar. Mesmo quando dizemos "estou a passar-me", queremos dizer que vamos mudar de estado, que vamos experimentar uma transição de fase. Passarmos de líquido a gasoso, ou de sólido a líquido. Ou, ainda, de sólido a gasoso directamente, ou de gasoso a sólido, também directamente. E, depois, se tentamos voltar ao ponto de partida, só conseguimos voltar a um ponto próximo do ponto de partida.
É por isso que, embora uma efeméride seja uma espécie de corrida contra o tempo, ela é também, muitas vezes, a oportunidade de fazer balanços e de pôr em confronto tempos diferentes. Justamente porque, se o tempo não volta para trás, podemos tentar perceber o que foi feito, o que não feito e o que poderia ter sido feito.
O personagem que faz depois de amanhã 31 anos é, como já notaram, o 25 de Abril. E apesar de o País estar muito diferente formalmente daquilo que era há 31 anos, está muito semelhante na manutenção do "mal português". Na superfície, o País está mais desenvolvido, mais rico, mais leve, mais tolerante, mais sofisticado, mais equipado, mais letrado, mais cimentado, mais culto, mais cool, mais democrático, mais solto, mais livre. Mas se levantarmos um pouco a pele da realidade ainda vemos um país pequenino, mesquinho, preconceituoso, reverencial, medroso. Um país em que um polícia ainda tem qualquer coisa de agente da repressão ou, pelo menos, é olhado como tal. "Sim, senhor agente." E isso quer dizer que, apesar de a seta do tempo só ter um sentido, pode ter várias velocidades e até velocidade negativas. O tempo avança e há países que se atrasam. "Não tenhas pressa, mas também não percas tempo", alguém me disse. "Tenho pressa de partir", retorquiu António Variações, "para outro lugar". E o que é Portugal hoje, a dois dias do 31.º aniversário do seu renascimento? É um país que, sem dúvida, está na moda, várias matérias na imprensa internacional confirmam-no, mas que, e paradoxalmente, continua a ser o mais atrasado da chamada Europa Ocidental para a mesma imprensa e de acordo com todos os indicadores.
Portugal, 31 anos depois, é um país descontínuo já tem o melhor, mas ainda tem o pior. É generoso e mesquinho, sofisticado e provinciano, tolerante e preconceituoso até ao miolo genético. E como se vive por aqui? Com paciência, com muita paciência, e uma doce melancolia. Felicidades, Portugal, a tua sorte também é nossa!
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