Caldeirão da Bolsa

Regulação sectorial e concorrência

Espaço dedicado a todo o tipo de troca de impressões sobre os mercados financeiros e ao que possa condicionar o desempenho dos mesmos.

Regulação sectorial e concorrência

por marafado » 6/1/2005 18:44

Regulação sectorial e concorrência

Maria Manuel Leitão Marques


O antagonismo que se sentiu entre a Anacom e a Autoridade da Concorrência, a propósito da titularidade sobre a rede de cabo, constitui um exemplo do que pode vir a repetir-se em outros casos que envolvam esta Autoridade e qualquer dos restantes reguladores sectoriais.

De facto, a Autoridade da Concorrência tem hoje competência sobre todos os sectores de actividade económica, tanto em matéria de práticas restritivas, como no que se refere ao controlo das concentrações. Pelo seu lado, às autoridades reguladoras sectoriais têm sido frequentemente atribuídas funções de promoção da concorrência, em especial, quando a regulação é necessária para estimular a entrada de novos operadores no mercado e controlar o abuso de posição dominante por parte dos operadores já instalados.

Esta situação conduz a que existam competências sobrepostas entre dois tipos de autoridade. E se há questões evidentes onde a competência deve ser do regulador sectorial (como a homologação de tarifas) ou da autoridade da concorrência (como as actividades colusivas de fixação de preços ou repartição de mercados), pode haver outras – como o acesso às infra-estruturas essenciais, redes ou outras – onde as competências podem ser exercidas pelas duas autoridades, ainda que o regulador sectorial intervenha preferencialmente ex-ante (regulando o acesso) e a autoridade da concorrência ex-post (penalizando os abusos por parte dos titulares ou gestores das redes). Essa possibilidade suscita problemas como o da existência de mais do que um controlo sobre o mesmo tipo de práticas; o da escolha do regulador mais favorável; ou o da inconsistência e incompatibilidade de orientações e decisões.

Contudo, não é fácil encontrar uma “receita única” que previna esses problemas e se aplique sem mais a todos os sectores e a todos os países. A variação de soluções, que ora privilegiam a intervenção da autoridade da concorrência ora a do regulador sectorial, explica-se pelas diferenças na cultura de concorrência de cada país ou no prestigío relativo de cada uma das autoridades. As soluções variam igualmente em função das condições técnicas e económicas dos sectores regulados. A liberalização não ocorreu ao mesmo ritmo nas telecomunicações e nos transportes ferroviários. Quanto menor é a concorrência efectiva, maior será a importância do regulador sectorial, incluindo em questões de concorrência. Assim, no caso português, na água ou nos transportes ferroviários, a Autoridade da Concorrência quase se limitará, por ora, a fazer estudos de mercado e a recomendar, eventualmente, a introdução de mais concorrência.

Mas mesmo nos sectores onde existe um nível elevado de concorrência, como o financeiro, exige-se uma colaboração entre as duas autoridades, considerando que o regulador sectorial tem um conhecimento especializado e uma visão de conjunto de todo o sector que lhe permite avaliar em melhores condições a coerência de qualquer intervenção e a probabilidade de ela atingir os seus objectivos, mesmo em matéria de concorrência. Mais que não seja por uma questão de economia de recursos públicos, não é assim aconselhável a duplicação desse conhecimento. Neste sentido, o Governo esclareceu recentemente que cabe à Anacom, mediante parecer prévio da Autoridade da Concorrência, identificar os “mercados relevantes” para efeitos de concorrência. E que, uma uma vez determinados os operadores com “poder de mercado significativo”, compete ao regulador sectorial, se o entender, fixar-lhes obrigações.

Em suma, para além da transparência, o relacionamento entre os dois tipos de autoridade deve ser feito em nome da segurança jurídica dos operadores económicos, no respeito do princípio do balcão único e da desburocratização em matéria de acesso e de exercício da respectiva actividade, de modo a facilitar a compreensão do contexto regulatório e não a torná-lo mais complexo.

Por isso, é importante que se aperfeiçoem os instrumentos de colaboração entre as duas autoridades e sobretudo que haja algum bom senso na sua aplicação, procurando-se sempre a melhor solução para o mercado e não o maior protagonismo para cada uma delas. Mas, em simultâneo, é também necessário que as duas autoridades mantenham alguma independência e, de certo modo, uma certa vigilância recíproca. A lógica da concorrência tenderá a ser mais forte na autoridade da concorrência e o conhecimento especializado do sector nas autoridades reguladoras sectoriais.

____

Maria Manuel Leitão Marques é professora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
 
Mensagens: 3433
Registado: 5/10/2004 16:59

Quem está ligado:
Utilizadores a ver este Fórum: aaugustobb_69, Google Feedfetcher, PAULOJOAO e 131 visitantes